sexta-feira, 5 de agosto de 2016

O Diabo 2: O que te domina?

Vamos continuar a falar sobre o arcano do Diabo pois esta carta é muito rica em significados e seu simbolismo atravessa gerações e culturas distintas.

No texto anterior vimos como o arcano 15 numa leitura sugere a situação de dominação do Ser por algo que ele mantém escondido, seja porque em algum nível sente prazer nessa dominação seja porque ainda faltam ferramentas para confrontar seu algoz e se libertar dessa escravidão.

Este arquétipo é comportamental, mas tem força de ação a partir do mental da pessoa. Tudo começa no sistema de crenças que foi introjetado ainda na infância, quando aquela criança ainda não tinha condições de discernir sobre atitudes e conceitos.

Em toda família temos estabelecido um sistema de crenças, um jeito de ver a vida e de se posicionar no mundo. Muitas vezes, há uma religião que determina o que é bom e o que é mal, o que é aceitável e o que não se pode fazer. Esse sistema de crenças vai sendo incorporado pela mente infantil como sendo a própria realidade, já que a mente filtra a realidade real e absorve somente aquilo que faz sentido para ela.

No Tarot Zen de Osho, essa carta é chamada de "Condicionamento".

A realidade pode ser algo bem maior do que imaginamos, ou ainda a realidade pode ser diferente do que aquela mente incorporou como sendo o real. Temos aí um déficit entre o mundo real e a visão de mundo da pessoa, o mundo real fica limitado pelo tamanho do enquadramento que a mente deu para esse mundo.

Em nossa infância, o entorno no qual vivemos pode ter feito a mente assimilar crenças que determinam que “não merecemos ser felizes”, ou “não podemos ganhar esse monte de dinheiro sem sujar as mãos”, ou ainda que “só seremos felizes depois de casar e comprar uma casa própria”.

Outras vezes, a mente se identifica tanto com apenas um aspecto do Ser que a pessoa acredita que é apenas aquele aspecto. Por exemplo, uma criança que deixava de fazer a lição de casa e era constantemente taxada de “preguiçosa”. Ela pode internalizar esse rótulo e realmente acreditar que ela É preguiçosa, enquanto que na realidade pode ter havido apenas algumas ocasiões em que ela ESTAVA com preguiça mas desenhava muito bem!

A mente pode não diferenciar o ser do estar, e atribuir então à pessoa esse rótulo que vai determinar suas expressões e atitudes ao longo da vida. Como fazer diferente se na minha vida toda eu sempre acreditei ser preguiçosa? Ficamos aí presos no chamado “complexo de Gabriela”, o eterno “eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim”.

Nada mais limitante do que acreditar ser o que você não é!

Então, chega na nossa vida o arcano 15 para nos mostrar qual é o estado de consciência que impede o pleno desenvolvimento, porque é esse estado de consciência que vai criando a sua realidade. A realidade em que a pessoa acredita vai se tornando concreta e vai confirmando dia a dia aquela crença inicial: “sou uma pessoa preguiçosa e não mereço ser recompensada positivamente. Na minha vida, nada dá certo mesmo, eu não mereço...”

As crenças limitantes são um viés que turvam a realidade real, e uma lealdade inconsciente àquelas crenças vão minando a energia criativa da pessoa até que ela se sente improdutiva e refém desse jeito de ser dela. Aquela crença limitante vai dominando toda a capacidade de criação e de realização da pessoa. A vida para naquela mesmice de sempre e o que eu recebo do mundo não me alimenta mais.

Quando isso acontece, é comum a vida começar a criar padrões de repetição dos eventos que nos colocam em choque com essa crença limitante: a falsa segurança de agir de acordo com o que sempre acreditei que era eu.

Sustentar nossos condicionamentos pode ser muito penoso e uma tensão constante.

Esse conflito interno pode exigir muita energia psíquica para ser resolvido, e até podemos ir adiando esse confronto por muito tempo, até que um dia a dor dessa estagnação nos alcança e nos força a enxergar o mundo como ele é de verdade, e não mais como gostaríamos que fosse. Isso é o arcano do Diabo em ação.

É nesse contexto que o arcano do Diabo vem iluminar nossa conduta, forçando-nos a reconhecer que impulso foi aquele que gerou nossos condicionamentos produzindo resultados negativos para nós. O Diabo se torna Lúcifer - o portador da luz, que iluminando as nossas sombras mostra a verdadeira natureza daquelas ações, permitindo à consciência enxergar o quadro completo e perceber sua autorresponsabilidade em tudo que produz.

Ver com clareza a própria realidade é reassumir seu lugar no mundo e retomar para si o poder de decisão sobre a própria vida, resgatando sua capacidade enquanto agente consciente para fazer suas próprias deliberações de acordo com quem Eu Sou. Não fico mais à mercê daquela programação infantil que se repete indefinidamente, mas agora tenho liberdade para fazer escolhas e fluidez para viver.

Nesse novo estado de consciência, o Ser pode agora rever suas crenças e se reprogramar internamente para poder realizar aquilo que o realmente deseja, materializar no mundo externo aquilo que seja fiel à sua verdadeira natureza interna e que agora ele reconhece.

Mas há ainda algo no arcano 15 que eu gostaria de falar a respeito, e é sobre a relação de dominação do feminino pelo masculino que vem melhor elaborada no tarot de Aleister Crowley e Frieda Harrys.

Qual o maior poder que uma pessoa pode ter?

Sem dúvida é o poder de criar outra pessoa, a fertilidade. Vejam que interessante a representação da fertilidade humana a partir da união dos princípios feminino e masculino na carta do Tarot de Toth.

Por isso a ilustração da carta feita por Frieda Harrys traz o grafismo dos órgãos reprodutores, o feminino dentro do masculino. O masculino está bem óbvio na pintura, mas o feminino está escondido no traçado do bode.

E o que se parece graficamente com um bode com chifres tão compridos?
  
Isso mesmo, o útero e os ovários femininos. É desses órgãos que vem a energia criativa da mulher e de todos os seres que ela vai gerar. As mulheres geram todas as pessoas que existem no planeta, toda a energia vital que circula entre os humanos vem das mulheres. O DNA mitocondrial que transfere a parcela de energia para as células vivas do corpo humano vem exclusivamente do óvulo da mãe.

E para dominar um tremendo poder como esse, o meio mais eficiente é a criação de uma cultura que sobreviva a qualquer sistema de leis e religiões, e não somente subjugue essa potência mas a desqualifique de tal forma que torne todos os atributos femininos em negativos. 

Enquanto o masculino é capaz, forte, eficiente e competitivo, o feminino é incapaz, frágil, insuficiente, incompleto e tantas outras coisas “ruins”.

Na outra ponta, nossa cultura ocidental foi fortemente apoiada no cristianismo e em alguns pilares do judaísmo, tendo absorvido o símbolo do “bode expiatório”. Essa cerimônia era praticada bem antes de Cristo, onde o povo hebreu se reunia anualmente para lançar energeticamente todo o seu ódio, sua raiva e frustração daquele ano sobre um bode, o qual canalizaria toda essa energia ruim e levaria a culpa por todos os malfeitos do povo. O bode era morto sobre um altar, sacrificado para expiação dos pecados de todos.

Nessa correlação simbólica entre o bode com chifres e os órgãos reprodutores femininos, vemos que todo o ódio, raiva e frustração de um povo continuam sendo direcionados energeticamente para um alvo comum: a mulher.

O efeito inconsciente desse padrão simbólico é sentido em todas as populações, a cultura do machismo oprime as mulheres em todos os grupos e representações sociais. Isso tem nome: se chama misoginia, é o ódio direcionado ao feminino que impregna todos os atos de violência contra a mulher, deixando bem claro como essa canalização energética motiva a intolerância dirigida à mulher e ainda a culpa por isso. Ela é o próprio bode expiatório.

E as mulheres por sua vez absorvem esse padrão da culpa feminina de forma também inconsciente, podendo se submeter mais comumente a relações desiguais e abusivas ou até mesmo desenvolvendo comportamentos autodestrutivos para punirem-se pelo desejo da “desobediência” ao sistema de opressão, como por exemplo a bulimia como resposta à desobediência do padrão da magreza, ou a automutilação como punição à desobediência ao padrão da beleza.

A misoginia é uma crença limitante, atemporal e supracultural, que define programações mentais muito eficientes e que impede homens e mulheres de alcançarem suas verdadeiras vocações.

Quando temos a oportunidade de lançar luz sobre essas questões de dominação cultural que nos atingem a todos, homens e mulheres, isso mobiliza muitos conteúdos internos. Podemos perceber como um sistema de crenças de uma pessoa poderia tê-la estimulado desde a infância a um nível de competitividade e exercício de autoridade implacáveis, o que podem impedí-la  de desenvolver relacionamentos saudáveis na fase adulta. 

E como isso pode reverberar negativamente no dia a dia de todos num espectro mundo maior quando governos e líderes incorporam essa programação mental e passam a reproduzir essas limitações negativas no mundo real, impedindo coletivamente a construção de relacionamentos saudáveis por gerações inteiras.

Nada mais provocativo que um Diabo mulher para nos fazer pensar a respeito do machismo e misoginia definindo quem nós somos na sociedade moderna de hoje, não? O Tarot de Marselha, um dos primeiros conjuntos de cartas divinatórias, já tratava bem dessa caricatura social lá em meados dos anos 1700.

Ter essa clareza sobre a nossa história civilizatória e do quando podemos ser influenciados por um sistema de crenças que resiste por eras e culturas, possibilita um verdadeiro salto quântico e nos coloca em outra escala de percepção dos eventos da nossa vida. Isso pode ser a chave mestra para abrir os cofres do nosso inconsciente e tirar de lá de dentro medos e crenças limitantes que impedem nossa evolução pessoal e coletiva.

Como disse Jung: “o que não enfrentamos em nós mesmos, encontramos como destino”.

Verbenna Yin
Astros - Tarot - Psicanálise