sexta-feira, 22 de junho de 2018

O Julgamento

verbenna yin
Rider-Waite Tarot
Seguramente o arcano que recebe mais interpretações inadequadas é este, o Julgamento, pois com essa nomeação remete nossa percepção ao ambiente bíblico apocalíptico que pressupõe um “fim do mundo” e um “juízo final" que dão um tom negativo à ideia original do arquétipo.

A carta do julgamento geralmente vem ilustrada com essa imagem de pessoas ressurgindo, saindo de suas tumbas em resposta ao toque das trombetas que marcam o início de um novo tempo. Aqui na ilustração tradicional do Tarot Rider-Waite vemos em primeiro plano um homem, uma mulher e uma criança despertando da morte ao som da trombeta celeste e recebendo de braços abertos uma figura angélica que usa um estandarte com forma de cruz na cor vermelha.

Na abordagem Junguiana para o desenvolvimento psicológico humano, todo o funcionamento da psique é estruturado em aspectos distintos que funcionam como polos (princípio da polaridade) e que se compensam mutuamente num sistema de autorregulação. Quando se investe mais energia num determinado aspecto intrapsíquico, indiretamente também se desenvolve o respectivo aspecto oposto, pois a polaridade atua de forma compensatória na direção da manutenção do equilíbrio de forças. É assim o balanço energético entre consciente e inconsciente, persona e sombra, animus e anima, as partes que compõem a psique na estrutura idealizada por C. J. Jung na psicologia analítica.

Nesta sugestão de imagem acontece o mesmo, o homem num polo e a mulher no outro, ambos despertos e receptivos, indica que esta carta fala de um tempo psicológico onde o indivíduo já realizou essas compensações psíquicas e hoje encontra-se em equilíbrio e devidamente estruturado.

A criança no centro se relaciona à figura do SELF, a essência mais pura de cada indivíduo que é mantida escondida no inconsciente e que levamos toda uma vida para nos encontrarmos com ela. É o SELF que faz as reorientações íntimas e determina o momento das compensações de forças psíquicas pois é o centro regulador da psique inteira. Quando conseguimos entrar em contato com nossa essência mais profunda, estamos diante do nosso SELF: nosso Eu verdadeiro.

É como teria dito Jesus nos evangelhos: “é necessário nascer novamente para entrar no reino dos Céus”.

Ao escrever sobre os sonhos e as representações simbólicas do inconsciente, que refletem nossos estados psíquicos diante da existência, Jung afirma que a visão da criança indica que a pessoa está tomando contato com seus aspectos mais autênticos e espontâneos, que podem ter ficado inacessíveis durante tanto tempo que até  nos esquecemos - mas que durante o trabalho terapêutico de autoconhecimento é possível acessá-los novamente.

Para Jung, no inconsciente esse vislumbre da essência verdadeira geralmente ocorre com a visão de uma “criança divina”. A criança simboliza esse retorno ao primordial após ter sido realizada a grande jornada de complementação dos opostos no jogo de projeções da mente.

As projeções são imagens mentais que traduzem nossas questões mais íntimas e que ainda não temos condições de enxergar apropriadamente, seja porque tais conteúdos nos assustam, seja porque ainda não desenvolvemos a fortaleza necessária para lidar com esses temas. De toda forma, essas questões “aparecem” de forma distorcida quando nos relacionamos com as outras pessoas, pois projetamos nelas esses aspectos que são nossos mas ainda são inconscientes.

Nesse sentido, aquilo que enxergamos nos outros não passa de um filme projetado, de uma miragem, pois o que vemos nem sempre é o real daquela pessoa - mas com certeza é realmente nosso.

É preciso ultrapassar esse estágio de projeções para podermos nos enxergar honestamente e realizar o trabalho interno de integrar nossos aspectos conscientes e inconscientes, depois de trazermos nossos conteúdos sombrios à consciência e termos transformado essas memórias em algo construtivo para nós mesmos. Aí sim é possível retornar à verdadeira origem e recomeçar a trajetória de vida com a mesma confiança e inocência de uma criança.

verbenna tarot
Zen Tarot - Osho
Essa é a proposta do Tarot Zen inspirado nas lições do guru indiano Osho. Nesse tarot todas as cartas são apresentadas como posturas individuais perante a vida e ou retratos de momentos do nosso mundo interno.

Aqui a carta do Julgamento recebeu uma ilustração mais adequada ao seu simbolismo no nosso tempo, assim como um novo título: “Além da Ilusão”. Se trata da representação desse estado interno em que não temos mais ilusões a serem projetadas na realidade externa, estamos além dessa dinâmica e podemos ver com clareza os nossos aspectos internos sem nos assustarmos com eles nem negarmos sua existência ou culpar os outros por isso. 

A borboleta, símbolo da transformação, indica que já houve essa metamorfose do estado interno e a chama no terceiro olho sugere uma percepção mais refinada que consegue captar uma realidade mais sutil. Os olhos estão fechados pois tudo que vemos com nossos olhos comuns são reflexos nossos, então aqui eles não são mais necessários.

Ao nos aceitarmos completamente como somos e estarmos dispostos a lidar com a nossa real natureza, experimentamos uma espécie de novo nascimento pois temos agora uma segunda chance de realizar nosso propósito de vida da forma mais autêntica possível.

Esse renascimento simbólico significa o retorno às origens mais puras, onde todo o meu SER se manifesta de maneira harmônica, sem esforço, honesta e livremente expressando tudo aquilo que sou de verdade. Aqui o estado interno é de seguir o fluxo de eventos que vida propõe, sem amarras nem resistências, sem necessidade de realizar algo para ser beneficiado por seu resultado ou receber reconhecimento por ter feito bem. Renascidos, nos apresentamos à vida dispostos às experimentações que nos chegarem, mantendo uma atitude receptiva e vivificante.

Neste retorno às origens não é preciso mais usar máscaras (as "Personas" de Jung), não há necessidade de responder mais aos condicionamentos nem buscar a aprovação do outro para agirmos  como queremos ou nos prejudicar para conseguir atender algum desejo. Tudo já foi pacificado e nossa organização psíquica opera harmonicamente.

É essa harmonização interna que a bandeira da imagem inicial representa. Nos estudos das mandalas, Jung aponta que a forma de cruz nos desenhos simboliza a união dos opostos, indicando que a pessoa venceu os conteúdos internos que seriam projetados nos outros. Agora ela consegue lidar com os aspectos próprios e também com os dos outros sem se sentir ameaçada, sem precisar usar mecanismos de defesa nem se incomodar com o que vê refletido no outro.

Nossas imagens refletidas não nos ameaçam mais pois a atitude agora é a do observador que a tudo assiste e procura aprender, sem se envolver, além das ilusões e das projeções da mente.

verbena
Dark Tarot
Nesta outra imagem o conceito principal permanece mas é ilustrado de outra forma, indicando que a mulher e o homem respondem ao chamado da figura divina que possui uma aréola circular, correspondendo à ideia de que agora consciente e inconsciente agem em conjunto para atender o SELF simbolizado pelo círculo.

Na abordagem Junguiana o círculo é o símbolo maior do SELF, sendo as mandalas sua expressão mais profunda e completa. Na mandala encontramos a expressão não verbal dos conteúdos do SELF, que conseguem burlar o filtro da razão e escapar das censuras do consciente.

Quando a terapêutica envolve processos racionais de elaboração, como fala e escrita, nosso consciente pode impedir que certas memórias, afetos e emoções se expressem. Nesse caminho podem ainda haver julgamentos, críticas internalizadas, idealizações e comparações, e tudo isso junto atua como obstáculo para que o ser verdadeiro se mostre.

Já na mandala esses conteúdos encontram um outro caminho para se manifestar. Como a mandala é desenhada, esse conjunto organizado de formas e cores expressa o SELF sem passar pelas aprovações e seleções da mente consciente. Por isso a mandala é o retrato fiel do estado de ser de cada pessoa e tem tanta importância no processo terapêutico na abordagem Junguiana.

E isso é que o arcano do Julgamento tenta representar, esse momento em que houve uma pacificação das forças internas e externas pois nada mais pode atingir negativamente o indivíduo: as dores, as memórias, as projeções, as idealizações, a falta de confiança, tudo isso já passou.

Aqui o indivíduo morreu para essas coisas e agora está renascendo para um novo tempo em que irá atender plenamente o chamado do SELF para realizar aquilo que é seu propósito na existência. Sua vida agora tem sentido.

Quando estamos integrados ao nosso SELF conseguimos nos mover pela vida de forma mais fluida e seguimos pelo fluxo dos eventos sem inseguranças. Procuramos expressar com nossas atitudes quotidianas aquilo em que acreditamos, então passamos a fazer escolhas que nos contemplam melhor. Pode ser o tipo de alimentação, a forma de se vestir, o trabalho que realmente faça bem a si mesmo e ao outro, a atitude colaborativa, a receptividade com o outro, enfim, tudo que confirme externamente aquilo que já existe do lado de dentro.

Aqui a direção da energia é de dentro para fora, o ser manifesta com segurança no mundo externo aquilo que existe no seu interior - numa orientação contrária àquela que atende às necessidades do Ego, pois o Ego precisa do reconhecimento externo para confirmar o que acredita haver no interno. 

No fluxo do Ego as confirmações do reconhecimento externo são frágeis pois tudo que vem do externo é projetado, logo, não é real. Mas no fluxo do SELF a nossa expressão é verdadeiramente real pois manifesta externamente o que existe no mais íntimo e profundo da alma humana.

São tantas formas de manifestarmos no mundo nosso potencial, mas que agora acontecem sem necessidade de reconhecimentos externos nem na base da barganha, e cada uma de nossas pequenas ações serão agora resultados dessa orientação pelo SELF - que vai aos poucos se manifestando de dentro pra fora. Nossa essência finalmente emerge.

Ao nos entregarmos à orientação do SELF, passamos a viver com mais consciência, entendemos nosso propósito de vida e procuramos usar o nosso tempo de forma construtiva, ocupando positivamente nosso lugar e colaborando para criar no mundo externo a mesma realidade interna de paz e equilíbrio.

Verbenna Yin
Astros - Tarot - Psicanálise

3 comentários:

  1. Olá Verbena.

    Descobri seu trabalho através de seu artigo no Clube do Tarot sobre O Enforcado.

    Vc não imagina como suas palavras ressoaram e ressoam em mim como verdade.

    Tb sou taróloga e sua visão sob a ótica junguiana abriu novos horizontes para a minha própria visão do Tarot. Mas o maior benefício foi sem dúvida o pessoal.

    Este ano vivo sob o arquétipo do Julgamento e esta leitura me fez entender perfeitamente o motivo da minha crise atual, trazendo calma e paz para o meu momento.

    Desejo que você tenha sempre energia e amor para continuar firme e forte trazendo luz para as pessoas.

    Muito obrigada.

    Att,
    Rosane

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  2. Lágrimas aos olhos lendo seu maravilhoso texto!!Muito obrigada por esta análise tão profunda e elucidativa em relação a carta do Julgamento. Agora entendí...

    Gratidão imensa!!

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    1. Que bom saber que você está aproveitando este conteúdo, volte sempre que quiser :-)

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