domingo, 6 de setembro de 2015

A Morte


verbenna yin
Tarot Rider-Waite
Arte de Pamela C. Smith
Um esqueleto montado em um cavalo branco, enormes, cavalgando por cima das pessoas na terra. Ele já pisoteou o rei, que está caído no chão ao lado de sua coroa, e está prestes a passar por uma mulher e uma criança. Adiante, um sacerdote tenta argumentar com esse ser cadavérico que continua seu passo sem qualquer empatia. Todos caem prostrados ante sua magnitude. Ao fundo, vemos uma queda d’água que separa aquela terra das torres que emolduram um grande sol ao longe.

Aqui temos o grande arquétipo da morte, o fim de todas as coisas como são conhecidas no mundo físico. Simbolicamente, os desligamentos e desapegos impostos pela vida aos quais teremos que nos render em algum momento.

Quando algo morre no mundo físico, seja um animal ou um vegetal, ocorrem os processos de decomposição dos materiais orgânicos que não resistem à ação transformadora da natureza. A transformação acontece por meio de reações químicas que dissociam os elementos componentes daquele organismo, promovendo o desfazimento da forma original e permitindo outras reações e combinações entre os elementos que se reorganizam, favorecendo potencialmente o aparecimento da uma nova forma.

Esse mesmo processo pode acontecer no nível psíquico, pois a morte é uma representação arquetípica e está além dos domínios do nosso controle consciente.

Na carta, as figuras atingidas estão em primeiro plano, em terra firme, denotando que os processos arquetípicos de morte, que se operam psiquicamente, são iniciados a partir de eventos no mundo externo, na realidade.

Simbolicamente, a morte é justamente a experiência humana pela qual passamos todos quer queiramos ou não, podendo representar com muita propriedade esse evento temido e indesejado que não podemos controlar. Aqui na carta, a representação simbólica do arcano indica um momento de extrema tensão emocional associada a um quadro da realidade que se impõe e ao qual será impossível resistir. Um trauma.

Por ser um processo arquetípico e de intensa carga emocional, o prenúncio da chegada da morte é sempre acompanhado pelo medo e uma certa perturbação. O medo nos faz agir impulsivamente para nos defendermos das mudanças inevitáveis que decorrerão da experiência, pois onde há medo há ainda um Ego que resiste.

Infelizmente, a morte é uma experiência em que toda a resistência apresentada será insuficiente, ela é grandiosamente maior que todas as nossas possibilidades de ação e sempre vencerá, passando por cima de tudo que havíamos planejado e construído. Exatamente como a sugere a carta.

No aspecto psicanalítico, a consciência tentará se proteger diante da intensidade dos afetos relacionados ao evento externo, podendo se encaminhar por duas possibilidades: conformar-se à experiência e promover uma adaptação iniciando uma estrutura neurótica, ou cindir-se e iniciar uma estrutura psicótica.

Na primeira hipótese, a carga emocional gera um conflito tão grande para o indivíduo que ele precisa defender-se dessa dura realidade para sobreviver psiquicamente e poder continuar sua trajetória. Assim, o indivíduo abre mão de partes de si mesmo que naquele momento não podem sobreviver a um dado contexto que é real e de extrema exigência para ele, mas que extrapolam seu âmbito de ação consciente.

Poderia ser o caso de alguém que vai bem nos estudos mas vive numa família que não valoriza o conhecimento por conta da necessidade de recursos e tem que abandonar a escola para trabalhar e ajudar financeiramente. Suas habilidades intelectuais não são reconhecidas e para continuar pertencendo ao seu grupo, garantindo sua sobrevivência emocional, o indivíduo abre mão de algo muito próprio. Ao abrir mão de algo genuinamente nosso é como passar por uma pequena morte, pois enterramos esse desejo e todo o esforço anterior feito para alcançá-lo, que agora não será mais recompensado.

Note que na carta quem argumenta com o Cavaleiro da Morte é o Bispo, figura que aparece anteriormente no arcano do Hierofante que nos fala justamente da importância do pertencimento para um desenvolvimento psíquico saudável. Não é à toa que essa mesma figura e tema sejam revisitados aqui, pois a ideia é de que haverá uma negociação para que a morte completa não aconteça e assim consciente e inconsciente põem-se em termos para defender a sobrevivência e permitir a adaptação do indivíduo ao seu meio da forma que for possível. A frustração aqui é determinante, mas o indivíduo é capaz de superá-la de alguma forma e seguir com sua vida e desenvolvimento.

E a carta segue dando as dicas do que acontece nesse processo. As torres que vemos ao fundo reaparecerão no arcano da Lua mais pra frente, onde finalmente poderá ocorrer o retorno ao Id para que o indivíduo possa buscar, consciente e voluntariamente, suas partes perdidas na experiência da morte. Mas aqui o processo todo acontece de forma inconsciente, o Sol está se pondo e é ofuscado pelas torres.

Na adaptação ao trauma, a divisão dos aspectos intrapsíquicos acontece como tentativa de apaziguar a tensão interna, o que geralmente ocorre com a criação de um sintoma lançado na realidade externa a fim de manter uma certa convivência pacífica entre as forças psíquicas conscientes e inconscientes. Pode se materializar como um padrão de repetição de eventos externos (rompimentos bruscos de relacionamentos, desligamentos de empregos onde nos dedicamos demais, amigos que se afastam sem motivo aparente, etc.), onde o que na verdade se repete é a sensação interna de impotência e isolamento. Conectados com o arquétipo ainda não assimilado pela consciência, vamos repetindo a experiência até que ela seja visível aos nossos olhos internos – para podermos trabalhar com isso adequadamente.

Então, no quadro neurótico, apesar de sobreviver e ser capaz de participar da realidade, produzir e se relacionar, o custo dessa sobrevivência para o indivíduo será a repetição que se estabelece doravante, condição que o colocará em conflito psíquico permanente, impedindo-o de desfrutar prazerosamente da vida porque ele fará de tudo para não entrar em contato com esse conteúdo forçosamente reprimido, criando métodos e caminhos mentais para assegurar que não enxergará esse material que foi “enterrado”. De forma que a aparente inevitabilidade dos eventos justifica sua ocorrência e a mente consciente não percebe que existe uma poderosa força psíquica de atração desses acontecimentos.

Geralmente nesse quadro neurótico, o indivíduo pode se sentir seguro comprometendo-se com demasiadas tarefas diárias e necessidades que sente ter que atender minuciosamente. Não existem grandes ações diante da vida, os sonhos são sempre impossíveis de realizar, a pessoa se mantém o tempo todo ocupada com pequenas coisas enquanto o alcance das suas ações nunca é suficiente para contemplar os desejos reais, que permanecem não admitidos. No fundo, ela está se empenhando numa luta constante consigo mesma, embotando seu âmbito de visão e percepção para manter afastado aquele afeto/desejo amputado que é a origem de todo o quadro.

Esses conflitos são vividos por repetição e podem ser a origem de neuroses que se manifestam de forma obsessiva (mente) ou histérica (corpo), dado sua natureza originária em comum. Freud tocou neste ponto em sua obra “As neuropsicoses de defesa” ao afirmar que o indivíduo age para afastar a memória traumática e transformá-la numa representação diversa, entendendo que a manifestação da neurose seria assim o resultado de “uma ocorrência de incompatibilidade que aconteceu em sua vida ideacional”. O afeto reprimido do trauma pode ser reproduzido em fatos inusitados como repetições compulsivas, pequenos acidentes, cortes e até em sintomas físicos, e essas repetições num dado momento forçarão o indivíduo a revisitá-las conscientemente como propõe J. Lacan ao estabelecer como matema que: “O que não veio à luz do simbólico, aparece no real.”

Já o quadro psicótico se dá quando a consciência foi dissociada prejudicando a coerência entre mundo interno e externo pois os conteúdos inconscientes irrompem desenfreadamente na consciência e não há mais como controlá-los.

É o surto, um momento de rompimento com a realidade e o indivíduo não consegue lidar de forma compatível com as coisas que lhe acontecem. Ele pode identificar um gatilho na realidade e vivenciar crises de pânico e ansiedade, que parecem reações exageradas e incoerentes com o evento externo relacionado, ou pode também criar uma porta de acesso permanente ao inconsciente iniciando um quadro psicótico.

A negociação com o consciente não é mais possível nesse caso. Nise da Silveira, importante psiquiatra brasileira que usou a abordagem Junguiana na terapêutica de pacientes psicóticos, sobretudo esquizofrênicos, faz a seguinte observação em sua obra “Imagens do Inconsciente”:

“Quando o ego cinde-se, estilhaça-se, seja por incapacidade para suportar a tensão de certas situações existenciais, pelo envolvimento em relações interpessoais destituídas de amor, frustrantes ou opressivas, seja devido ao impacto de emoções violentas ou ao trabalho surdo de afetos intensos, a libido introverte-se, vindo reativar o inconsciente. O ego, partido em pedaços, não tem forças para fazer face à realidade externa nem tampouco consegue controlar a maré montante do inconsciente.”


Tarot de Marselha
Em um e outro casos, a fragmentação será inevitável e a continuidade do desenvolvimento psíquico irá depender de que o Ego seja capaz de juntar todos os pedaços novamente. Isso pode levar muitos anos até que a pessoa esteja fortalecida novamente para realizar esse trabalho interno, e tanto a neurose como a psicose podem ser os caminhos mentais cujo propósito final será a integração possível dos fragmentos do Eu.

É o que propõe a imagem dessa carta no Tarot de Marselha, indicando o trabalho da consciência em reunir as partes fragmentadas que num outro momento poderão ser unidas novamente visando a recomposição psíquica em uma unidade integral.

Nesta imagem, a figura que segura a foice tem partes do corpo com pele e tecidos, mas em outras partes tem apenas ossos, simbolizando bem essa perda de partes essenciais de si que ocorre nos processos de fragmentação. A figura perdeu o pé, a mão, e o rosto: sem os pés não pode se dirigir ao que deseja, não tem autonomia; sem as mãos fica impedida de realizar e agir; e sem o rosto fica sem identidade. É a total impotência.

Mas a atitude dessa figura é o ajuntamento dessas partes perdidas que estão espalhadas pelo chão, sugerindo que a noção do tarot para a vivência deste arcano é positiva e que a experiência da morte, no fundo, visa à recomposição do indivíduo à sua forma original. Quanto maior a força impactadora do evento que criou a fragmentação, tanto maior será a força de coesão necessária para recompor a integridade interna.

É o que Jung reitera ao afirmar que “quando o processo atinge a esfera do inconsciente coletivo passamos a lidar com material sadio, isto é, com a base universal da psique, sejam quais forem as variações individuais”. E ainda: “as coisas que vêm à luz brutalmente na loucura permanecem ocultas nas neuroses, mas, apesar disso, continuam influenciando o consciente. Quando a análise dos neuróticos penetra mais profundamente, descobre as mesmas figuras arquetípicas que ativam os delírios dos psicóticos.”

Qualquer que seja então o desdobramento do consciente diante da experiência de morte, neurose ou psicose, sempre haverá um ponto comum e originário do processo que levarão ao material arquetípico desejado: a transformação.

É na reorganização posterior que ocorrerá a trans-formação, a mudança da forma antiga para uma nova apresentação. O trabalho do Ego consciente será o de assimilar a experiência, reconhecendo e nomeando os afetos e emoções relativos a esse evento impactante e dando lugar ao processo de luto, onde a pessoa poderá elaborar o que lhe aconteceu e ir se despedindo daquela forma anterior para assumir essa nova apresentação da realidade e de si mesma.

Osho Zen Tarot
A transformação é a imagem proposta pela representação desse arcano no Tarot Zen de Osho, que relaciona essa experiência ao deus hindu Shiva, senhor do fogo destruidor que reduz tudo a cinzas e permite os recomeços.

Geralmente os processos do arcano da morte estão associados a separações, perdas, rejeições e também a falecimentos reais. Qualquer que seja o disparador externo, será necessário lidar com a emoção desencadeada diante da impotência e que em algum momento será constituinte dessa nova versão individual, transformada.

Quando o arcano da morte se manifesta numa leitura terapêutica, é importante localizar na linha do tempo que evento foi esse que marcou tão intensamente a pessoa, para que ela possa nomear a experiência e se dar conta do que foi preciso renunciar e “deixar morrer” para seguir adiante. Ou talvez ela esteja revivendo essa pequena morte no momento atual, envolvida num processo de desapego muito importante.

Em todo caso, a escolha dessa carta mostra que é tempo de reconhecer que perdas aconteceram e que possibilidades reais existem de agora em diante. Pode ser necessário vivenciar no momento atual o luto para assimilar completamente a experiência e dali poder retomar seu desenvolvimento em novas bases.

Verbenna Yin
Astros - Tarot - Psicanálise

domingo, 9 de agosto de 2015

O Enforcado

Tarot de Marselha
Um homem preso pelo calcanhar esquerdo, pendurado de cabeça para baixo e com as mãos presas às costas. Limitado ainda pelo pouco espaço, aos lados há troncos de árvore podados e não se vê o chão, dando a ideia de que não há possibilidade de movimentos.

Tudo aqui denota que o homem está numa posição não natural.

Apesar disso, o homem tem uma expressão facial curiosamente serena, como se ele estivesse confortável nessa situação tão limitante.  

Situações de vida limitantes podem minar a expressão dos talentos e habilidades naturais de uma pessoa. Quando a vida impõe limites numa trajetória, acaba podando as oportunidades de nos desenvolvermos da melhor maneira. 

É o que acontece com uma criança que cresce numa família que não é capaz de reconhecer seus talentos inatos e desqualifica suas expressões e espontaneidade. Por exemplo, uma família onde os pais são "fieis cumpridores de regras" e o filho que chega tem tendências artísticas, talento para a dança e para fazer imitações. No contexto daquela família, pode não haver espaço para apoiar essa "bobagens de criança", o filho pode ser constantemente podado e levado a entender que suas manifestações artísticas atrapalham e não são bemvindas ali naquele grupo. 

E o que a criança faz para ser aceita e amada pelo seu grupo familiar?

Ela abre mão das suas expressões e aprende que a espontaneidade não cabe ali, que se ela quiser fazer parte daquele grupo tem que aceitar a poda. Tem que deixar de ser o que ela é e assumir uma postura antinatural e contrária à sua essência.

Eu uso a palavra "poda" de propósito. Já notaram os galhos podados ali na imagem do arcano?

Nossas possibilidades, capacidades inatas e potências naturais são constantemente podadas num mundo que aceita determinados estereótipos de imagem e comportamento, que tenham como finalidade apenas manter a produtividade das pessoas e o uso do tempo de vida de forma organizada para esse propósito. Tudo que foge desse padrão é minado sem dó nem piedade, aprendemos desde cedo que temos que nos adaptar às exigências sociais e já na infância vamos deixando partes de nós serem amputadas para podermos caber no modelo que garante para nós aceitação e sobrevivência.

A falta de oportunidades para desenvolvermos os talentos naturais impede a nossa melhor expressão e pode nos tornar seres passivos diante de nossa própria história, resultando em indivíduos que não tem a real noção das suas possibilidades diante da vida.


C. G. Jung, criador da psicologia analítica, estudou esse processo de formação psíquica e percebeu que a mente humana cria uma ferramenta própria para se adaptar melhor ao ambiente em que somos recebidos. Ele chamou de "Persona" essa área da mente consciente que escolhe quais características irá manifestar e aprimorar a fim de que o indivíduo possa ser reconhecido pelos outros e a partir disso possa interagir com mais chance de sucesso e garanta a melhor adaptação possível ao meio.

Para Jung, a Persona "surge por razões de adaptação ou de conveniência pessoal".

Num ambiente saudável onde haja aceitação e estímulo das capacidades inatas a Persona também se desenvolve, mas as escolhas conscientes são mais harmônicas e o indivíduo tem a chance de evoluir nos seus potenciais próprios, o que o leva a se sentir mais contemplado diante da vida.

Mas o que o arcano do Enforcado nos mostra é a situação contrária, onde o indivíduo foi tão podado das suas potencialidades inatas e precisou se adaptar de uma forma tão desconfortável que terminou por ficar de ponta cabeça, numa posição completamente contrária à sua verdadeira natureza.

Se a gente fizer uma retrospectiva da nossa história pessoal, vamos perceber esses momentos em que ainda na infância julgaram mal algo que gostávamos de fazer, fomos repreendidos e nos deixaram bem claro que não poderíamos repetir aquilo. Aquelas partes de nós eram inaceitáveis.

E aí que vamos crescendo e construindo nossa autoimagem sem essas partes de nós que não tiveram lugar, aos poucos vamos nos identificando com essa nova imagem que agrade os outros e com o tempo acreditamos que somos esse resultado e nos reconhecemos na nossa Persona.

O maior exemplo de Persona que temos na nossa vida social é a profissão que escolhemos. Quando nos apresentamos para alguém que não nos conhece ainda, dizemos: Sou fulano de tal, tenho tantos anos e SOU ALGO.


Essa qualificação que afirma que eu sou alguma coisa (médico, advogado, engenheiro, professor, etc.) cria em torno de nós expectativas para outras escolhas como desdobramentos daquela inicial, que vão desde a aparência física, as roupas que uso, o modo de falar que emprego, os locais que eu frequento, as pessoas com quem me relaciono, e até mesmo os planos futuros são construídos na dependência dessa qualificação.

Tudo tem que ser condizente e coerente a essa Persona, a Persona acaba dominando todas as escolhas possíveis e não sou mais livre para escolher o que no fundo desejo.


Tarot Gringonneur
E assim passamos a vida fazendo escolhas que nos mantém naquela mesma postura antinatural em que fomos colocados lá na infância. 


Mas apesar da impossibilidade ser evidente, a pessoa não se dá conta disso. Seu rosto mostra quase um sorriso, e de fato se invertermos a posição da carta pode parecer que ela está se divertindo, pulando num pé só, talvez até dançando!

Esse é o efeito da inconsciência. Quando não temos noção do nosso real potencial na vida não vemos as limitações como impedimentos ao nosso melhor, aprendemos a conviver com essas restrições e nos confortamos dizendo que “a vida é assim mesmo”. Essa atitude de resignação pode significar uma incapacidade de lidar com a culpa de não assumir a autorresponsabilidade pelo que vivemos, ou até mesmo uma falsa valorização interna a partir dos sacrifícios que são necessários para manter aquela situação.

Ficamos presos num ideário próprio limitante, e o pior, acreditando que estamos bem assim pois ganhamos algo dessa forma. 

Vejam que interessante a imagem do Tarot Gringonneur onde o homem está segurando duas bolsas cheias de moedas, indicando que ficar na posição antinatural pode até ser bem recompensada.

Mas a que preço?


Citando Jung novamente, para ele "podemos dizer, sem exagero, que a Persona é aquilo que não é verdadeiramente, mas o que nós mesmos e os outros pensam que somos".

O grande desafio aqui é perceber que mesmo bem adaptados e quicá recompensados socialmente, nossa postura adquirida, na realidade, é antinatural e nos prejudica. Por mais que nas ilustrações do Enforcado a pessoa esteja sorrindo, essa sensação de felicidade não é real: o desconforto de estar amarrados é o real. 


Tarot Rider-Waite
Podemos preferir acreditar num pseudo conforto pois essa ideia nos anestesia para não encararmos a dureza de vivermos uma vida parada, monótona, sem possibilidade de crescimento e que no fundo estamos desperdiçando nosso tempo de existência fazendo e construindo coisas que não nos contemplam.

É aqui que faz toda a diferença a imagem ilustrada pela genial Pamela C. Smith no Tarot Rider-Waite: a luz sobre a cabeça parece indicar que é somente nessa condição extrema que pode haver lugar para uma iluminação pessoal.


Somente quando nos permitirmos sentir o real incômodo de permanecer amarrados à postura antinatural da condição limitante é que há oportunidade de um crescimento verdadeiro. E digo verdadeiro porque esse será um crescimento que passará pelo momento de reconhecimento da essência daquela pessoa, de quem ela É de verdade.

A forte identificação com a nossa Persona nos torna pessoas rígidas, inflexíveis, sem capacidade de movimentação perante as diversas possibilidades da vida.

As sucessivas amarras que vemos nas diversas representações deste arcano reforçam, simbolicamente, a “impossibilidade de ser” do indivíduo ali representado, indicando que naquela condição é impossível qualquer progresso verdadeiro no sentido de desenvolvimento humano. 

Amarrados e inflexibilizados, é inútil desejar algo e ir em busca dessa satisfação. E sem o desejo, não somos pois o que movimenta nossa psique em busca do desenvolvimento pessoal é justamente o desejo. Ao final, o desejo é a busca por nós mesmos, a busca por essa essência que ainda não teve chance de ser reconhecida.

J. Lacan afirma que "se existe um objeto do teu desejo, ele não é outro senão tu mesmo", indicando que tudo que nos mobiliza perante a vida, no fundo serve para promover este encontro profundo entre nossa consciência e esse ser interno que sempre esteve lá, imanente, esperando para ser encontrado e finalmente poder ser expressar com liberdade.

Algo intrigante neste arcano é o título “Enforcado”, que a um primeiro momento parece não ser apropriado à imagem do homem pendurado pelo pé. E se consideramos que o enforcamento é uma penalidade a alguém que foi condenado, fica mais clara essa relação com a impossibilidade de movimento. Num enforcamento real a pessoa se debate com movimentos corporais involuntários, porém todos esses movimentos somente aceleram o processo de interrupção da oxigenação do corpo que a levará à morte.

Tal como no enforcamento, a situação representada neste arcano nos mostra que todos os movimentos da pessoa estão condenados, a morte é certa. E de fato, a Morte é o arcano que se segue ao Enforcado.

Este não é um arcano muito simples e sua representação não é óbvia, mas a mensagem central desta simbologia é: não há vida sem movimento.

Em algum momento da trajetória do indivíduo esse SER interno, essa luz própria na cabeça do arcano e que está apenas esperando para se manifestar neste mundo material, vai começar a dar sinais de sua existência - para ser então reconhecido pela consciência e restabelecer a possibilidade de movimento perante a vida.

Abrir espaços para iniciar essa busca por si mesmo é o primeiro passo para sair da inflexibilidade. Admitir que não somos a nossa Persona é uma grande desafio, mas é o passo inicial para começarmos essa caminhada em busca das partes de nós que ainda não tiveram chance de se manifestar, mas que ainda estão lá esperando para serem resgatadas e trazidas à luz da nossa consciência.

Quando o Enforcado salta numa leitura, é o momento de se reavaliar honestamente para perceber que nossa vida atual não nos contempla e que de fato estamos aprisionados a uma idealização de nós mesmos que não é capaz de crescer e prosperar. 

Talvez seja o momento de encarar de frente uma relação aprisionante, uma dependência emocional, ou mesmo uma trajetória inteira que não condiz com nossos verdadeiros potenciais e pode nos deixar profundamente frustrados. 

Percebendo que traços são esses que não desenvolvemos de forma consciente, podemos ir mais fundo na busca por nós mesmos e ir, pouco a pouco, dando lugar para as partes de nós que nos contemplam e realmente nos vivificam.

Verbenna Yin
Astros - Tarot - Psicanálise

domingo, 29 de março de 2015

A Justiça

o ajustamento
Tarot de Thoth
Uma mulher segurando uma espada em pé, posicionada entre uma balança perfeitamente equilibrada em seus ombros.

A mulher também se equilibra sobre uma pequena superfície, na ponta dos pés, apoiada na lâmina cortante.

A imagem também está perfeitamente equilibrada em sua representação gráfica, complementada por esferas correspondentes em verde e azul acima e abaixo da mulher.

Na balança, os pesos são as letras Alfa e Ômega, dando a ideia de que o “Todo” está em constante equilíbrio. 

Qualquer movimento desmancharia a postura da mulher: se ela escorregar um dos pés, se cortará na espada e cairá; se um dos lados da balança for mais pesado, não será possível manter o apoio nos ombros da mulher; se uma das esferas sair do lugar, afetará sua correspondente acima ou abaixo.

Tudo nesta carta nos remete ao significado central deste arcano: Equilíbrio. E esse significado está muito evidente na imagem arquetípica como representada por Frieda Harris no Tarot de Thoth idealizado por Aleister Crowley.

Tomando por base a máxima hermética de que “Assim como é acima, é abaixo”, o macrocosmo reproduzindo o que há no microcosmo e vice e versa, podemos inferir que o Equilíbrio consiste numa correspondência entre as esferas superiores e inferiores, entre o material e o sutil, entre o real e o psíquico, sugerindo um alinhamento do que há em maior escala com aquilo que exista numa escala menor.

Aqui vemos em ação os princípios da correspondência e da ressonância, o que acontece fora do indivíduo reproduzindo o que já acontece dentro dele.

Nem sempre nós temos a percepção correta do nosso momento de vida e das nossas próprias evoluções diante da vida, mas a atração é uma lei universal e mesmo que para alguém essa correspondência seja inconsciente, essa força existe e atrairá as experiências externas que colocarão à prova aquela realidade imanente que acontece dentro, forçando a pessoa a se dar conta desse alinhamento e assim entrar em equilíbrio com o que é realmente seu.

Em termos jurídicos, o conceito de Justiça significa “dar a cada um o que é seu”. É para isso que buscamos a justiça na resolução de conflitos, para que o juiz, símbolo social da justiça, possa decidir sobre as razões apresentadas e defina o que é de cada parte por direito.

Mas não podemos esquecer que a Justiça é um ideal humano, restrito a uma compreensão da vida e das relações entre as pessoas que foi possível ser desenvolvida até aquele momento histórico.

Por exemplo, já houve um tempo em que alguém que devia dinheiro a outrem era levado como escravo para servir seu credor até o pagamento completo da sua dívida. Ou ainda dar o filho como escravo para saldar o débito do pai. Hoje essa situação não é mais possível, pela elaboração histórica dos direitos das pessoas já concluímos que a escravidão fere os princípios humanitários e que nenhuma pena pode passar da pessoa do infrator.

Pelos séculos vemos um movimento constante em busca do ideal de justiça, que de tempos e tempos vai se transformando para alcançar uma melhor compreensão dos direitos e das necessidades humanas. Mas por mais contemporâneo que seja o ideal de justiça estabelecido, ainda haverá as limitações determinadas pela evolução cultural daquele grupo de pessoas.

Por isso Crowley atribui a este arcano o nome “Ajustamento”. Não há justiça verdadeira enquanto não houver um completo desenvolvimento do potencial humano em suas relações. Então, enquanto grupo, vamos continuamente ajustando nossa percepção de justiça àquilo que nos é possível cumprir e realizar.

E essa é a metáfora proposta pelo arcano, que nós estamos em constante desenvolvimento e seguimos em busca da realidade externa que faça justiça ao que existe internamente em nós.

E a relação proposta em termos psicanalíticos é com o tema da autorregulação psíquica que está em andamento o tempo todo em nós, as forças internas que compõem a nossa personalidade e que estão em contínuos ajustes pelos mecanismos de compensação de energia e complementação dos opostos na busca pela completa integração do SELF.

Jung sustentava que a psique humana, formada por diversos sub-aspectos conscientes e inconsciente, busca a todo o tempo promover o encontro do consciente com o inconsciente a fim de que o indivíduo possa reconhecer quem ele é e entre em sintonia com o seu propósito de vida, fazendo voluntariamente os ajustes que forem necessários para essa coerência acontecer.

Mas o que acontece de fato na nossa vida é que somos guiados ainda na infância pelas expectativas dos nossos pais, dos grupos aos quais pertencemos, ou ainda aqueles grupos aos quais buscamos nos ajustar, e aí esse encontro entre consciente e inconsciente fica prejudicado.

É quando o sistema da autorregulação entra em ação e começa a promover o nosso envolvimento com situações externas que vão espelhar aquilo que está acontecendo do lado de dentro: frustração de termos falhado, medo de exposição, angústia por não podermos ser quem somos, insatisfação com as conquistas que se mostram insuficientes, são pequenos exemplos de como podemos nos sentir em alguns eventos da vida que, no fundo, querem refletir o que estamos vivenciando do lado de dentro.

E nesse sistema de correspondências entre o interno e o externo vai ficando possível perceber, por meio da emoção humana recorrente nesses eventos, que cenário interno é esse do qual temos que nos conscientizar. A emoção presente nos eventos repetidos pode nos dar uma pista do que está acontecendo, tal como a tonalidade afetiva que indica a formação de um Complexo e que na abordagem Junguiana promoverá a atração de um determinado número de eventos que se relacionem com aquele tema.

Quanto maior a força de um complexo, mais eventos daquela tonalidade ele atrairá pois é nesse jogo de correspondências e repetições que conseguimos vencer a resistência da consciência rumo à verdade de cada um.

Outra percepção que pode ocorrer neste processo é a de que, mesmo experimentando uma realidade externa agradável e satisfatória no “senso comum”, como por exemplo quando a pessoa é produtiva, tem uma família, tem suas propriedades e sucesso financeiro, ainda assim ela não se sente contemplada com o que conquistou e mesmo vivenciando as alegrias desse suposto sucesso ela passa pelos eventos como se estivesse anestesiada e sem poder desfrutar de tudo aquilo. Isso pode acontecer porque no íntimo a pessoa reconhece a incoerência entre o externo e o interno, mesmo sendo agradável aquele cenário externo não reflete o que ela deseja honestamente e a incongruência pode gerar sentimentos de inadequação e profunda insatisfação.

Adquirir essa consciência a respeito da correspondência entre os eventos externos e os cenários emocionais internos pode elevar a experiência para um outro nível, representando uma ruptura com o padrão atual e "empurrando" o indivíduo para uma realidade totalmente nova, mas que ele já está pronto para acompanhar. Essa é a evolução esperada para quem passa pelo processo do Ajustamento.

Quando esta carta aparece numa leitura terapêutica, muito provavelmente estamos nos dando conta de qual é o tema afetivo que aparece naqueles eventos que nos marcaram, principalmente quando percebemos que se tratam de repetições. Queremos tanto nos conscientizar desse cenário interno que vamos atraindo situações externas reiteradas vezes até que resta claro que tema é esse que precisamos enfrentar. A partir daí, o caminho terapêutico pode adquirir mais clareza e direção.

Verbenna Yin
Astros - Tarot - Psicanálise

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

A Roda da Fortuna

verbenna yin
Ansata Tarot
Na imagem deste arcano vemos uma grande roda girando, ladeadas por duas figuras de animais num cenário escuro. Acima da roda repousa a Esfinge e atrás da roda está o Sol e a imagem sugere que a roda está em movimento ora levando um animal para cima, ora o outro, numa constante alternância entre eles conforme a roda gira. 

Na interpretação tradicional do tarot esta imagem está associada ao reconhecimento de que existem forças maiores que nós que atuam em nossa vida, as quais não podemos controlar nem impedir, sugerindo que há momento em que temos que nos render às imposições que a existência nos traz.

Mas se relacionarmos os símbolos com os mitos podemos encontrar uma correspondência interessante com a noção Junguiana a respeito dos processos intrapsíquicos de compensação de energia, alteridade entre os aspectos opostos da psique e autorregulação do sistema psíquico na busca pelo SELF (o si-mesmo, a essência).

Enquanto símbolo, o Sol é a esfera que indica o contato com o SELF e o sucesso no caminho pelo autorreconhecimento, mas aqui nesta carta o Sol está atrás da Roda. Apesar de presente, ele está obscurecido pelas figuras mitológicas e não é suficiente para clarear o cenário total, sugerindo que o caminho rumo ao SELF ainda esteja escondido no inconsciente individual.

Já a roda parece ser um simulacro do SELF, uma pré idealização do que esse SELF poderia ser pois a forma circular também se apresenta e nisso há a possibilidade de movimento. A invenção da roda deu-se para isso, para conferir movimento às civilizações que precisavam se deslocar em busca de água e sobrevivência.

O fato de ser a roda e não o Sol o objeto central deste arcano faz muito sentido se considerarmos que o 10 ainda está na metade do percurso dos arcanos maiores do tarot, com 22 cartas. Então ainda estamos na fase inicial da jornada pela individuação, não sendo mesmo esperado que nessa etapa se conquiste tão fácil acesso aos conteúdos psíquicos mais profundos.

Abaixo da imagem estão as serpentes, animais que são relacionados ao conhecimento do que é proibido e indicam o perigo da intoxicação pelo veneno que esse saber pode representar. As serpentes se entrelaçam no mastro da roda como num Caduceu de Mercúrio, reforçando esse aspecto de que há um conhecimento nessa área mais funda da imagem, mas o caminho para esse acesso é perigoso.

Do lado direito da imagem vemos uma cabra com cauda de peixe na posição ascendente, que faz relação com o símbolo do signo de Capricórnio, o qual, por sua vez, na Astrologia sustenta a noção de resiliência e ambição que nos motiva a realizar o que for preciso para ascendermos pessoal e socialmente. Num paralelo com a dinâmica psíquica proposta por Jung, aqui temos uma correspondência com a figura da Persona, aquela área da consciência que funciona como “relações públicas” do Ego e nos apresenta ao mundo de uma forma positiva e eficiente a fim de permitir nossa melhor adaptação ao mundo externo.

Do lado oposto se encontra um cão com mãos no lugar das patas e um rabo também de serpente que se entrelaça na roda, indicando que na direção contrário se encontram os apegos e os instintos mais primitivos que nos conduzem de volta para a região desconhecida e escura do inconsciente.

A alternância entre essas duas figuras pode ser comparada à alternância entre as forças psíquicas entre a Persona e a Sombra, pois segundo Jung quanto mais energia se coloca na construção da nossa Persona mais energia empregamos para reprimir aqueles nossos atributos que não consideramos coerentes com essa ideia consciente de nós mesmos, criando assim material equivalente na área inconsciente – a Sombra.

E seguindo os princípios de equivalência e constância, Jung formulou que a própria psique produz um movimento de alternância entre esses dois aspectos, que são contrários entre si, e esse movimento visa a compensação dessas forças internas em busca de uma autorregulação psíquica.

Não é possível sermos apenas nossa Persona, por mais que coloquemos intenção e energia nela, esse aspecto geralmente não contempla nossa totalidade e viver apenas a Persona é uma grande mentira, uma desonestidade com a gente mesmo. Por isso, de tempos em tempos nossa psique libera a energia da Sombra, a fim de que possamos entrar em contato com essas partes de nós reprimidas e relegadas ao esquecimento do inconsciente, para que possamos nos colocar em termos com elas.

A esse movimento espontâneo e inconsciente, Jung chamou de Enantiodromia. A Enantiodromia é um processo que ocorre no inconsciente, o indivíduo não se dá conta de nada e segue sua vida sem notar os efeitos psíquicos em si mesmo nem os efeitos práticos no seu dia a dia. Mas a falta de consciência não impede o movimento interno pois a alteridade e a compensação seguem a lei universal da integração dos opostos.

Esse é o mesmo princípio da física que move o pêndulo, de um lado para o outro. Enquanto a força empregada for a mesma, o pêndulo se moverá para a esquerda e para a direita, mantendo a força total do movimento mas seguindo um ritmo de compensação constante.

Para Jung, é impossível refrearmos o movimento natural da psique na direção da autorregulação, apenas seguimos o movimento e vamos experimentando na realidade física situações práticas que refletem essa movimentação do ambiente interno.

Quando não temos consciência desse sistema de autorregulação, apenas nos damos conta de que alguns eventos sempre se repetem. Pode ser os nossos relacionamentos afetivos que não passam de um determinado ponto, pode ser que não consigamos nos estabelecer profissionalmente, somos prejudicados por colegas de trabalho, somos injustiçados, rejeitados ou feridos sempre da mesma maneira.

Essa é a forma do inconsciente reproduzir no ambiente externo o movimento da roda, ora subindo e ora descendo, até que possamos nos aperceber desse processo e nos apropriarmos dele com consciência – o que se relacionará com outro arcano mais pra frente.

E no fundo o que conseguimos captar desse movimento é o que se apresenta no exterior mesmo, nos damos conta da repetição e quando essa repetição nos incomoda é que vamos buscar do lado de dentro o que esse padrão diz a nosso respeito. E pra não deixar de citar Freud: "Repetir, Recordar e Elaborar".

Aqui ainda não há possibilidade para a elaboração, o Sol da consciência não reina nesse arcano. Por hora, enquanto o processo acontecer por força da enantiodromia as repetições podem até ser percebidas mas sentimos que não temos força para evitá-las e às vezes só as vemos mesmo quando já aconteceram e temos que lidar com as suas consequências, tamanha a nossa falta de percepção e inconsciência.

Por isso Jung afirma com tanta propriedade que: “Até você se tornar consciente, o inconsciente irá dirigir sua vida e você vai chama-lo de destino.”

Este arcano se refere a esse momento da vida, em que temos apenas o vislumbre das repetições e notamos um certo padrão, já que o Sol está presente na carta e indica que o Ego consciente conseguiu captar a existência do processo de repetições.

Essa é a chance de se dedicar ao escrutínio dos eventos passados e perceber qual o sentido dessa narrativa oculta, o que geralmente vai acontecer no ambiente terapêutico e já na vida adulta, pois a presença do Sol nos diz que o Ego consciente está fortalecido para suportar o encontro com os conteúdos do inconsciente.

Quando a Roda da Fortuna se apresenta numa leitura terapêutica, a pessoa pode estar justamente iniciando as elaborações conscientes necessárias para entender melhor sua história pessoal e a queixa principal que a levou a procurar pela análise, sendo uma ótima oportunidade para aprofundar a terapêutica e ampliar as formas de acesso ao inconsciente com outras técnicas que possam acelerar o processo.

Verbenna Yin
Astros - Tarot - Psicanálise

domingo, 21 de setembro de 2014

O Eremita

Um homem caminhando sozinho na noite escura. Ele tem barbas e cabelos brancos pois já é velho, usa um cajado como apoio e um lanterna para iluminar o percurso, andando por um caminho árido e pedregoso rodeado de água ao fundo.

O Eremita representa o arquétipo do isolamento que em alguns momentos é necessário para podermos fazer as análises e julgamentos em nosso ambiente interno. Aqui o ancião é a figura que tem capacidade e experiência para observar de forma crítica os acontecimentos e a partir dessa análise racional fazer a discriminação de valor para os eventos que se afiguram.

Caminhando entre pedras, sugere que o percurso é difícil e requer esforço, e o fato de estar sozinho denota que houve um afastamento de seu grupo de convivência e apoio e a sensação deve ser a de não pertencimento. O Eremita é dessas pessoas que prefere se afastar do grupo, não encontra lugar nas formações coletivas e se retira para ter seus próprios momentos e experimentações - que não serão compartilhadas com ninguém.

Na estrutura psíquica proposta por Freud, no fundo do inconsciente se encontra o ID, o território da energia mais poderosa de cada indivíduo e onde armazenamos ao longo da vida todas as emoções, experimentações, afetos e memórias que não foram aprovadas pela nossa consciência.

No território do inconsciente, indicado pela presença de água na cena do arcano, a atitude crítica e pensativa do eremita se relaciona com a função do SuperEgo, que justamente perfaz essa função judicante dos nossos atos e posturas diante da vida. Se as experiências são coerentes com o modelo ideal ao qual minha consciência adere, essas experiências são validadas e fazem parte integrante da minha noção de Eu. Por outro lado, se a experimentação for de alguma forma incoerente com esse ideal, o SuperEgo vai classificá-la de forma negativa e podemos nos sentir desconfortáveis em esse material, aprendemos que isso “não é para nós” e deixamos de fazer essas coisas que não passaram no crivo do nosso poderoso fiscal interno.

Numa vivência saudável, o conteúdo que naturalmente seria reprimido pelo SuperEgo seria aquele não condizente com os valores humanos mais elevados, tais como a violência ou a agressividade dirigida aos outros que crie uma situação de risco para a convivência.

Mas na nossa vida prática em sociedade, com tantas regras de conduta para pertencermos aos grupos, desde a família, passando pela religião e até à nação à qual pertencemos, acabamos incorporando uma extensa lista de vivências e afetos que são considerados “não permitidos” ao nosso modelo de ser. Ao absorvermos essas restrições, criamos limites bem mais rígidos para nossa autoexpressão e ficamos com reduzidas opções de realização dos nossos desejos.

Podemos mencionar aqui as pessoas que não se permitem dançar numa festa, que não brincam com crianças para não parecerem ridículas, que não falam o que pensam mas só que convém, que não arriscam para não errar, que dizem sim quando querem dizer não.

Quando o censor interno é muito forte, nossas autoexigências são proporcionalmente fortes também e criam modelos de comportamento muito rígidos que não permitem nossa livre movimentação pela vida. E quando nos acostumamos a tantas restrições, acabamos ficando desprovidos de contato com nossos reais desejos e o caminho com o inconsciente, de onde vem nossa energia vital, se encerra.

Vimos na carta da Força como o fluxo aberto com o inconsciente nos preenche de vida e de energia, mas aqui no território do Eremita esse fluxo não acontece e a energia fica presa.

Esse é o ambiente do recalque, o processo psíquico de estagnação da energia libidinal associada a algum desejo que foi violentamente reprimido e lançado fora da consciência por ser considerado incompatível com autoimagem construída até aquele momento de vida.

Lançar conteúdos psíquicos para o recalque é sempre um processo violento e doloroso, praticamente uma amputação pois esses conteúdos se relacionavam a desejos genuínos do inconsciente, ou seja, partes de nós mesmos que não tiveram a chance de florescer e antes mesmo de brotarem foram cortadas e escondidas.

O desejo de conhecer outros lugares, de experimentar uma relação diferente, de trabalhar com o que se gosta ganhando menos dinheiro, de sair de um casamento que não satisfaz, de não ter que cumprir todos os compromissos assumidos, a mudar de ideia; todos esses desejos não permitidos podem ser material do recalque.

Se não podemos viver a oportunidade de dar vida aos nossos desejos, mesmo sendo jovens levaremos uma vida desvitalizada e sem energia, tal qual um idoso com dificuldades para caminhar. Os homens velhos caminham devagar e precisam do apoio de uma bengala, da mesma forma que nós vamos criando justificativas e desculpas para não realizarmos aquilo que genuinamente é o desejo do nosso coração.

O elemento que fará toda a diferença neste arcano é a lanterna. É com a luz da consciência que será possível estabelecer contato com o material que ficou recalcado no inconsciente, de outra forma não é possível sequer se dar conta que houve a repressão e o que ficou preso por ali.

Para entrar em contato com nossos conteúdos reprimidos geralmente é necessária a presença de um artefato externo, a laterna, que pode ser um terapeuta, um líder religioso, um mentor. De toda forma, para que essa percepção possa acontecer será preciso um afastamento do ritmo de vida usual para que as visões internas acessadas possam ser elaboradas pela mente consciente e o indivíduo se aperceba do quanto foi desprovido psiquicamente no processo do recalque. 

Nesse sentido, é essencial o ponto de vista sustentado por Freud de que todo o processo de análise só tem valor se for elaborado no consciente do analisando. Se não ocorrer essa elaboração racional, o conteúdo do recalque permanece no inconsciente e fadado às repetições que mais à frente iremos abordar nas relações com outros arquétipos. O Eremita tem que andar com sua lanterna.

Este é um processo de aprendizado diferente da aquisição de conhecimento transmitido oralmente, pelo ensino ou pela cultura, como é a ideia do Hierofante - Arcano 5. Com o Eremita, o aprendizado acontece pela experimentação verdadeira, a lição proposta é vivida “na carne” e pelo método mais eficiente: pelo “NÃO”.

O arcano do Eremita vai representar aquele momento em que encontramos restrições sérias impostas pela vida em função do recalque, com as quais podemos até lutar mas sem sucesso, pois são essas restrições que nos farão enxergar honestamente quem somos e o que de fato desejamos expressar e realizar. Depois de viver a experiência proposta pelo Eremita, o indivíduo não mais conhece: ele SABE.

E quando o indivíduo sabe, ele passa para um outro nível de consciência e percepção e, portanto, experimentará outros tipos de aprendizagem de vida. Neste ponto, as lições necessárias ele já deve ter absorvido e é possível encerrar um ciclo de aprendizado, o que vem representado pelo mistério do número 9 atribuído a este arcano. O número nove é o último na ordem dos algarismos, a partir dele todos os demais números são compostos pelos algarismos anteriores formando novas representações numéricas.

Ao ver com mais nitidez as restrições que nos flagelaram no processo de recalque, passamos a apreciar melhor nossas relações e a valorizar apropriadamente as oportunidades e experiências da nossa vida. A falta nos ensina a ter mais receptividade nos eventos futuros. E essas lições mais profundas são aprendidas não porque alguém nos contou, mas porque agora sabemos como é mais difícil viver quando não agimos de forma coerente à nossa natureza.

Da mesma forma, o Eremita sabe conviver com a falta e não leva nada mais que o necessário para seguir sua viagem, numa correspondência simbólica de como acontece na nossa trajetória como indivíduos construindo sua consciência.

Enquanto ficarmos presos nas necessidades sociais criadas para nos distrair do caminho, nos amputando para atender exigências externas, vamos postergando nossa trajetória e, como anestesiados, perdemos oportunidades valiosas de desenvolvimento. Manter o foco e a leveza, renunciando o peso da bagagem que não é nossa, são atitudes fundamentais para seguir adiante no caminho da evolução humana.

Quando o Eremita aparece numa leitura terapêutica, pode indicar que a pessoa vive um momento de observar e reavaliar se a trajetória está conduzindo ao lugar que ela quer ocupar no mundo. Muitas vezes, pode indicar o fim de um ciclo de vida em que é necessário um certo isolamento para retornar à essência e seguir adiante de outra forma.

Verbenna Yin
Astros - Tarot - Psicanálise

domingo, 22 de junho de 2014

A Força

verbenna yin
Labyrinth Tarot
Uma mulher nua, tranquila e confiante dominando um enorme e enfurecido leão. No tarot, a carta da Força é o símbolo do poder pessoal sendo utilizado positivamente com consciência e habilidade.

Neste arcano, a mulher vem representar nossas capacidades subjetivas e intuitivas, e talvez até inconscientes ainda, que nos diferenciam uns dos outros e que precisamos de um certo grau de maturidade para reconhece-las em nós para, a partir desse reconhecimento, poder desenvolver e utilizá-las da melhor maneira. 

Já o leão representa os desafios que encontramos no caminho rumo ao crescimento. Pode ser aquilo que nos dá medo, aquilo que julgamos ser maior que nossa capacidade, mas geralmente indica algo a ser superado com firmeza e coragem.

Ela está nua porque está despida de qualquer artefato externo para exercer o domínio sobre o leão. Toda sua confiança repousa em sua própria competência para dominar a fera, pois existe uma certeza interna de que aquele trabalho é possível mediante a aplicação da ação correta. E a leminiscata formada pela corda no chão vem dizer que são infinitas essas possibilidades, para cada pessoa que vivencia o arquétipo existirá uma atitude adequada para lidar com a sua própria fera.

Na primeira infância todos nós manifestamos um pouco daquilo que é nosso material interno bruto. Se somos literários, vamos nos interessar naturalmente pelas palavras e escrevê-las em diversos contextos; se somos cinéticos, provavelmente iremos dançar mantendo o ritmo ainda antes mesmo de andar sozinhos; se formos cuidadores, é possível que abracemos e precisemos de muito contato físico; se formos engenhosos, provavelmente desmontaremos os brinquedos e os objetos da casa; e por aí afora.

Num contexto psicanalítico, a nudez da mulher também nos dá uma dica do aspecto erógeno envolvido na vivência deste arquétipo, o que faz uma correspondência com a teoria das pulsões de Freud na qual ele afirma a natureza libidinal da pulsão sexual que é a chave para o acesso à vida psíquica.

A criança que está em contato direito com seu mundo interno consegue ir e voltar nessa ponte com o inconsciente e ela interfere na realidade de forma espontânea e fluida, sentindo-se feliz simplesmente por fazer aquilo que tem vontade.

Então essa carta dialoga muito com a hipótese de darmos vazão aos conteúdos do ID na satisfação dos desejos. A criança pequena não considera se seu desejo é conveniente ou adequado, ela realiza aquilo de que dá conta e assim vai experimentando os ambientes, as relações e as novas possibilidades. A satisfação vem pelo agir e nesse momento não há freios ou censuras a esses atos que ela sabe que consegue fazer.

Mas nem sempre os adultos que nos cuidam conseguem fazer a leitura de que a criança manifesta espontaneamente a matéria prima da qual é feita nessas pequenas atitudes do dia a dia, e não raro nos preocupamos mais em como arrumar a bagunça que elas fazem do que auxiliá-las dando estímulo para que continuem seus processos de investigação pessoal. Na busca da ordem quotidiana, passamos por cima dessa expressão natural das habilidades inatas que talvez não encontrem uma segunda chance para serem revisitadas mais tarde.

E lá se vão oportunidades de crescimento que simplesmente não permitimos que aconteçam. Fechamos os canais de fluência dos desejos e interrompemos a conexão com o ID, originando assim os conteúdos que ficam aprisionados nessa instância psíquica e que tanto interferem posteriormente nas nossas escolhas de vida.

Para uma autêntica expressão de si mesmo é preciso restabelecer os canais de conexão com o ambiente do ID - e observar por onde anda nossa libido pode nos dar uma pista de como fazer as reconexões necessárias para nos enchermos novamente de alegria e vitalidade.

Resgatar a atitude da criança interior é retomar uma postura livre diante do mundo na qual nossas reais habilidades podem ser vistas em sua totalidade, para que sejam reconhecidas e valorizadas de fato num processo de lapidação constante até o ponto de serem usadas natural e espontaneamente pelo indivíduo.

Thoth Tarot
Para chegar nesse ponto sendo já adultos, é importante a coragem de buscar no inconsciente que habilidades seriam essas que nos mobilizam para a vida e que podem até nos excitar sexualmente quando nos permitimos a isso. O que nos dá tesão e sacia nossa fome de vida. Em termos freudianos, sob o que recai a nossa pulsão de vida que vem do profundo inconsciente e está prestes a irromper no consciente, como propõe a ilustração de Frieda Harris no Tarot de Thoth. 

Andar pela vida com toda essa confiança restabelecida para buscar com independência a realização dos desejos do ID requer antes de tudo uma postura corajosa para agirmos e nos expressarmos do nosso próprio jeito, sem nos importar com os julgamentos alheios.

Essa noção vem da imagem do arcano, pois apesar de estar enfrentando o enorme leão, a mulher está calma e concentrada firmemente no que está fazendo.

Uma atitude confiante diante dos desafios que o leão representa somente é possível se mantivermos a atenção exclusivamente no momento presente, sem distrações. Exatamente como as crianças fazem quando estão brincando.

Quando podemos agir sem preocupação com o futuro, sem nenhum medo de repetir resultados negativos das experiências anteriores, e mesmo sem querer atender as expectativas alheias, conseguimos manter nosso leão pessoal sob domínio.

E não raro, colocar em prática os desejos do inconsciente é ainda muito prazeroso. Primeiro porque agir com liberdade é uma fonte de satisfação inegável. Mas também porque essas realizações baseadas na extrema autoconfiança nos trazem uma sensação de que não preciso de grandes esforços para realizar o que quero no mundo, uma completude de propósito que confirma o sentido da nossa trajetória.

Quando esta carta se apresenta numa leitura terapêutica, é possível que a pessoa esteja num momento de resgates importantes com sua infância, relembrando aspectos psíquicos que a definem mas que talvez tenham ficado relegados à escuridão do inconsciente. Será preciso restabelecer a conexão com a criança interior e buscar de novo o material bruto que a compõe para que gradativamente ela possa ir reincorporando esses atributos próprios no seu dia a dia e se sinta mais feliz e vitalizada.

Verbenna Yin
Astros - Tarot - Psicanálise

domingo, 30 de março de 2014

Peixes, a reconexão

De Peixes recebemos os influxos da compaixão, da ligação com o divino, da sensibilidade e a compreensão máxima do ser humano.

Piscianos são muito sensíveis, o elemento água no estado mutável é ainda mais receptivo e percebe as alterações no ambiente, capta todas as intenções e faz com que as impressões do mundo externo sejam muito fortes.

Com dupla regência, os nativos de Peixes contam com a capacidade de expansão concedida por Júpiter e com uma notável fonte de inspiração vinda de Netuno. A atuação conjunta das forças destes dois planetas tornam o pisciano um indivíduo com sensibilidade especial para criações artísticas. Poesia, música e sonho fluem naturalmente, o que pode levar o indivíduo a uma tendência escapista de permanecer interiorizado num constante contato com seu outro mundo – o que é simbolizado pelas direções opostas dos peixes na representação gráfica deste signo.

Piscianos possuem uma espiritualidade essencial e são muito devotados ao outro, possuem muita empatia com o humano e com sua sensibilidade acentuada se solidarizam com a dor do outro e muitas vezes ele mesmo sente essa dor, o que pode gerar um desgaste de energia. Essa empatia pode ser canalizada positivamente como uma habilidade natural para cura, como é por exemplo a doação de reiki e passes energéticos. Apenas não se pode esquecer que o pisciano precisa repor sua energia por meio da contemplação e da amorosidade.

O grande desafio da energia de peixes é realizar essa entrega à humanidade mas sem se deixar ser ou se sentir vitimizado por essa entrega. Quando o indivíduo ainda não tem uma autoestima madura para atender as necessidades do outro sem se prejudicar com isso, pode estar criando uma dependência emocional daquela situação, pois passa a justificar sua atitude de entrega desmedida em função da necessidade dessa outra pessoa - valorizando mais a necessidade do outro do que a sua própria.

Mas quando nos conectamos com o outro de forma verdadeira percebemos que o que acontece com o outro também nos atinge num reflexo reverso: se nos prejudicamos em nome da necessidade do outro, essa ajuda não é real porque no fundo o outro será responsável pelo prejuízo que permitimos acontecer conosco.

Para que a entrega real aconteça é importante chegar num ponto de equilíbrio em que a doação ao outro ocorra na medida do que eu posso fazer por mim mesmo. Assim, a entrega não será mais um movimento apenas em direção ao outro, mas a atenção ao outro passará a ser uma via de mão dupla em que o indivíduo já preenchido compartilha aquilo que tem dentro de si e recebe de volta a satisfação de ajudar positivamente, o que o preenche novamente. Basta abrir o coração para que a troca ocorra na medida certa.

E aqui vamos de encontro ao ensinamento de Jesus que diz “amai ao próximo como a ti mesmo”. Sem amor próprio, não é possível amar verdadeiramente o outro. Compartilhando nosso amor, restabelecemos a conexão com nossa própria essência, que nos torna verdadeiramente humanos.