Todo mundo já ouviu essa expressão popular que equipara Deus
aos atributos que corresponderiam a uma figura paterna: cuidadora, amorosa e provedora.
Quando alguma situação da vida dá certo, a gente diz “Deus é
Pai” porque assume que foi a interferência dele que conduziu àquele desfecho
favorável né? Ou então se a situação é difícil, depositamos nossa confiança
numa possível resolução positiva e “pedimos a Deus” para que tudo corra bem,
afinal, Deus é Pai e vai nos proteger do mal.
Ainda tem aquela variante que afirma que “Deus é Pai, não é
Padrasto” reafirmando que é o pai quem nos ama de verdade e que por isso sua
interferência é o melhor para nós, sua interferência não só é benéfica mas vem
carregada de algo especial que é o sentimento de afeto entre pai-filho, coisa que supostamente não
existiria na relação com o padrasto.
Todas essas idealizações sobre a figura paterna vão criando
em nós uma referência própria para essa palavra “Pai”, e numa cultura
judaico-cristã como é majoritariamente a cultura ocidental, essa idealização
tem repercussões bem maiores.
Quando a gente associa que “Deus é Pai” tendemos a misturar
as referências do que entendemos como Deus, enquanto Ser Divino, e como Pai, a
figura paterna que cada um tem. E se Deus é esse ser amoroso, bondoso,
compassivo e acolhedor do nosso imaginário, também vamos apreendendo esses
atributos como qualidades inerentes à nossa figura paterna. Logo, nossos pais devem
ser igualmente amorosos, bondosos, compassivos e acolhedores.
Mas e quando nossos pais não são assim?
Será que conseguimos olhar para eles e vê-los como são
realmente?
Ou será que passamos a vida dando chances para que eles “se
tornem” a figura paterna compatível com a divina e finalmente nos “confirmem”
que são mesmo tão amorosos quanto esse Deus que concebemos?
Acreditar que se ficarmos dando oportunidades para que a figura paterna aja de uma forma coerente com o nosso ideal de amorosidade pode não ser saudável, pode nos levar a constantes frustrações quando essa figura paterna não corresponde ao que imaginamos. E talvez porque essa figura paterna não seja mesmo amorosa e nos negamos a aceitar isso.
O Brasil é um país que tem mais de cinco milhões e meio de
crianças sem registro de paternidade e outros milhões de crianças que apesar de
conhecerem os pais sofrem de abandono material e afetivo.
Mesmo numa família tida
como tradicional, onde existem as figuras paterna e materna convivendo juntas,
é muito comum que o pai esteja ausente na maior parte do tempo principalmente
sob a justificativa de que “está trabalhando”. Esse pai operador e funcional o
tempo todo é muito valorizado!
Assim como Deus está longe no céu e sempre ocupado mantendo
tudo em sua ordem, tendemos a desculpar esse pai ausente que também se mantém
ocupado todo o tempo e não pode nos atender como queríamos ou precisávamos. Talvez isso crie o pensamento "tudo bem, porque trabalhar é muito importante e os pais trabalham, e eu também preciso trabalhar muito para o papai me aprovar..."
Na construção da nossa identidade, as figuras paterna e
materna são os primeiros modelos de comportamento que a criança vai assimilar e
enquanto energias, pai e mãe representam a nossa própria energia masculina e
feminina.
Absorver um modelo paterno saudável coloca em movimento a nossa própria energia masculina também de forma saudável e podemos criar e produzir coisas no mundo concreto com mais facilidade se essa energia estiver circulando livremente em nós.
Absorver um modelo paterno saudável coloca em movimento a nossa própria energia masculina também de forma saudável e podemos criar e produzir coisas no mundo concreto com mais facilidade se essa energia estiver circulando livremente em nós.
Já num conflito com a energia masculina em nós, homens e
mulheres, tendemos a bloquear esse fluxo e podemos ter problemas com nossa
afirmação no mundo real, com mais dificuldade para manter uma posição social e de trabalho
e nossas produções podem ficar comprometidas.
Mas o Deus bíblico não tem apenas atributos positivos, ele
também tem inimigos, é vingativo e muitas vezes sanguinário. Não perdoa
infidelidades, manda matar todos aqueles que não o adoram e não cumprem o que
ele manda. Ainda, reconhece como seus filhos somente aqueles que foram predestinados
a ser do seu povo escolhido, reservando a todos os demais o julgamento e a
danação eterna.
Como fica a nossa identificação com nossos pais
quando eles representam esses atributos negativos da figura divina?
Se Deus é Pai, então talvez esse Pai teria certa liberdade para ter e
exercer esses atributos negativos da figura divina também. São aprovações inconscientes que vão acontecendo conforme assimilamos a cultura, quando não temos a chance de lançar um olhar mais crítico aos efeitos dessas afirmações escondidas nos ditados populares e no senso comum.
Nesse contexto, um homem identificado com o lado negativo da figura do “pai
divinal” poderia se sentir confortável de impor sua vontade em qualquer
ambiente, sua palavra tem valor absoluto e, portanto, qualquer resistência à
sua vontade deve ser eliminada. Afinal, Deus é Pai e não tolera ser
contrariado.
Do outro lado, a mulher identificada com essa mesma figura poderia desenvolver uma culpa interna por se colocar contrária à imposição do pai – seu pai ou o pai dos seus filhos. Talvez ela ainda precise se sentir aceita como a filha do seu pai e aceite irrestritamente tudo que essa figura masculina lhe impõe. Talvez a dominação faça parte desse imaginário e assim permaneça obediente e submissa, vinculada a um ambiente onde estará vulnerável. Ou ainda, pode ter que pagar o preço por resistir a essa dominação justificando para si mesma um ambiente de intolerância e abuso.
Fato é que o Brasil, que apesar de ter a maioria da população assumidamente cristã, admitimos homens com perfis dominadores e abusivos na função de pais dentro do contexto familiar e, talvez por conta disso, tenhamos resultados surpreendentemente cruéis nos quadros de violência contra a mulher onde os companheiros e pais são os maiores autores de agressões contra mulheres.
Do outro lado, a mulher identificada com essa mesma figura poderia desenvolver uma culpa interna por se colocar contrária à imposição do pai – seu pai ou o pai dos seus filhos. Talvez ela ainda precise se sentir aceita como a filha do seu pai e aceite irrestritamente tudo que essa figura masculina lhe impõe. Talvez a dominação faça parte desse imaginário e assim permaneça obediente e submissa, vinculada a um ambiente onde estará vulnerável. Ou ainda, pode ter que pagar o preço por resistir a essa dominação justificando para si mesma um ambiente de intolerância e abuso.
Fato é que o Brasil, que apesar de ter a maioria da população assumidamente cristã, admitimos homens com perfis dominadores e abusivos na função de pais dentro do contexto familiar e, talvez por conta disso, tenhamos resultados surpreendentemente cruéis nos quadros de violência contra a mulher onde os companheiros e pais são os maiores autores de agressões contra mulheres.
Se queremos contribuir para a construção de uma sociedade
mais justa e saudável precisamos rever as referências que usamos para
construção da figura paterna de todos nós. Enquanto o Pai, no nosso imaginário,
for essa representação de atributos negativos como intolerância, autoritarismo,
abandono e violência, tendemos a reproduzir e aceitar esses mesmos
comportamentos em escalas maiores – que tornam nossa vida em sociedade menos
rica e muito menos saudável.
Talvez se conseguirmos olhar para os nossos pais, reais ou
internos, como eles realmente são, com todas as suas imperfeições e falhas,
aceitando que as pessoas são assim e acolhendo-as em suas incompletudes, não
precisaremos mais comparar homens a deuses nem esperar que nossos pais se
comportem como Deus, para o bem ou para o mal.
Talvez Deus seja Deus, mas eu penso que Pai possa ser somente pai
mesmo.
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