quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Deus é Pai – que pai é esse?



Todo mundo já ouviu essa expressão popular que equipara Deus aos atributos que corresponderiam a uma figura paterna: cuidadora, amorosa e provedora.

Quando alguma situação da vida dá certo, a gente diz “Deus é Pai” porque assume que foi a interferência dele que conduziu àquele desfecho favorável né? Ou então se a situação é difícil, depositamos nossa confiança numa possível resolução positiva e “pedimos a Deus” para que tudo corra bem, afinal, Deus é Pai e vai nos proteger do mal.

Ainda tem aquela variante que afirma que “Deus é Pai, não é Padrasto” reafirmando que é o pai quem nos ama de verdade e que por isso sua interferência é o melhor para nós, sua interferência não só é benéfica mas vem carregada de algo especial que é o sentimento de afeto entre pai-filho, coisa que supostamente não existiria na relação com o padrasto.

Todas essas idealizações sobre a figura paterna vão criando em nós uma referência própria para essa palavra “Pai”, e numa cultura judaico-cristã como é majoritariamente a cultura ocidental, essa idealização tem repercussões bem maiores.

Quando a gente associa que “Deus é Pai” tendemos a misturar as referências do que entendemos como Deus, enquanto Ser Divino, e como Pai, a figura paterna que cada um tem. E se Deus é esse ser amoroso, bondoso, compassivo e acolhedor do nosso imaginário, também vamos apreendendo esses atributos como qualidades inerentes à nossa figura paterna. Logo, nossos pais devem ser igualmente amorosos, bondosos, compassivos e acolhedores.

Mas e quando nossos pais não são assim?

Será que conseguimos olhar para eles e vê-los como são realmente?

Ou será que passamos a vida dando chances para que eles “se tornem” a figura paterna compatível com a divina e finalmente nos “confirmem” que são mesmo tão amorosos quanto esse Deus que concebemos?

Acreditar que se ficarmos dando oportunidades para que a figura paterna aja de uma forma coerente com o nosso ideal de amorosidade pode não ser saudável, pode nos levar a constantes frustrações quando essa figura paterna não corresponde ao que imaginamos. E talvez porque essa figura paterna não seja mesmo amorosa e nos negamos a aceitar isso.

O Brasil é um país que tem mais de cinco milhões e meio de crianças sem registro de paternidade e outros milhões de crianças que apesar de conhecerem os pais sofrem de abandono material e afetivo. 

Mesmo numa família tida como tradicional, onde existem as figuras paterna e materna convivendo juntas, é muito comum que o pai esteja ausente na maior parte do tempo principalmente sob a justificativa de que “está trabalhando”. Esse pai operador e funcional o tempo todo é muito valorizado!

Assim como Deus está longe no céu e sempre ocupado mantendo tudo em sua ordem, tendemos a desculpar esse pai ausente que também se mantém ocupado todo o tempo e não pode nos atender como queríamos ou precisávamos. Talvez isso crie o pensamento "tudo bem, porque trabalhar é muito importante e os pais trabalham, e eu também preciso trabalhar muito para o papai me aprovar..."

Na construção da nossa identidade, as figuras paterna e materna são os primeiros modelos de comportamento que a criança vai assimilar e enquanto energias, pai e mãe representam a nossa própria energia masculina e feminina.

Absorver um modelo paterno saudável coloca em movimento a nossa própria energia masculina também de forma saudável e podemos criar e produzir coisas no mundo concreto com mais facilidade se essa energia estiver circulando livremente em nós.

Já num conflito com a energia masculina em nós, homens e mulheres, tendemos a bloquear esse fluxo e podemos ter problemas com nossa afirmação no mundo real, com mais dificuldade para manter uma posição social e de trabalho e nossas produções podem ficar comprometidas.

Mas o Deus bíblico não tem apenas atributos positivos, ele também tem inimigos, é vingativo e muitas vezes sanguinário. Não perdoa infidelidades, manda matar todos aqueles que não o adoram e não cumprem o que ele manda. Ainda, reconhece como seus filhos somente aqueles que foram predestinados a ser do seu povo escolhido, reservando a todos os demais o julgamento e a danação eterna.

Como fica a nossa identificação com nossos pais quando eles representam esses atributos negativos da figura divina?

Se Deus é Pai, então talvez esse Pai teria certa liberdade para ter e exercer esses atributos negativos da figura divina também. São aprovações inconscientes que vão acontecendo conforme assimilamos a cultura, quando não temos a chance de lançar um olhar mais crítico aos efeitos dessas afirmações escondidas nos ditados populares e no senso comum.

Nesse contexto, um homem identificado com o lado negativo da figura do “pai divinal” poderia se sentir confortável de impor sua vontade em qualquer ambiente, sua palavra tem valor absoluto e, portanto, qualquer resistência à sua vontade deve ser eliminada. Afinal, Deus é Pai e não tolera ser contrariado.

Do outro lado, a mulher identificada com essa mesma figura poderia desenvolver uma culpa interna por se colocar contrária à imposição do pai – seu pai ou o pai dos seus filhos. Talvez ela ainda precise se sentir aceita como a filha do seu pai e aceite irrestritamente tudo que essa figura masculina lhe impõe. Talvez a dominação faça parte desse imaginário e assim permaneça obediente e submissa, vinculada a um ambiente onde estará vulnerável. Ou ainda, pode ter que pagar o preço por resistir a essa dominação justificando para si mesma um ambiente de intolerância e abuso.

Fato é que o Brasil, que apesar de ter a maioria da população assumidamente cristã, admitimos homens com perfis dominadores e abusivos na função de pais dentro do contexto familiar e, talvez por conta disso, tenhamos resultados surpreendentemente cruéis nos quadros de violência contra a mulher onde os companheiros e pais são os maiores autores de agressões contra mulheres.

Se queremos contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e saudável precisamos rever as referências que usamos para construção da figura paterna de todos nós. Enquanto o Pai, no nosso imaginário, for essa representação de atributos negativos como intolerância, autoritarismo, abandono e violência, tendemos a reproduzir e aceitar esses mesmos comportamentos em escalas maiores – que tornam nossa vida em sociedade menos rica e muito menos saudável.

Talvez se conseguirmos olhar para os nossos pais, reais ou internos, como eles realmente são, com todas as suas imperfeições e falhas, aceitando que as pessoas são assim e acolhendo-as em suas incompletudes, não precisaremos mais comparar homens a deuses nem esperar que nossos pais se comportem como Deus, para o bem ou para o mal.

Talvez Deus seja Deus, mas eu penso que Pai possa ser somente pai mesmo.


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