segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

A solidão da mulher produtiva

verbenna yin


Eu geralmente atendo mulheres que estão numa fase muito produtiva das suas vidas, mas que em algum momento se dão conta de que essa produtividade não lhes pertence.

Recentemente numa consulta uma paciente trouxe esse aspecto na vida dela. Acho que em maior o menor grau todas nós mulheres vivemos um pouco dessa situação que ela trouxe nesse encontro.

Era uma mulher independente e empreendedora, já tinha vivido dois casamentos, estava justamente saindo dessa última relação e se sentindo muito sozinha após a separação. Sua inquietação veio primeiro dessa forma: estava incomodada por se sentir sozinha.

Fomos observando esse lugar da “mulher sozinha” e acabamos constatando que ela não estava sozinha de fato, havia uma família, filhos, amigos e outras pessoas que continuavam a convivência com ela normalmente. Por que se sentia sozinha então?

Tentamos observar a questão do apoio mútuo que existe num casamento. Não havia mais apoio na relação que ela vivia, o marido demandava dela um suporte constante no sentido de presença, de afeto, de provisões materiais e até de comida. Não havia um movimento recíproco da parte dele em relação à ela, os planos e sonhos dela eram sempre muito “grandiosos” e ela “sonhava alto demais”, tudo que ela propunha fazer “daria muito trabalho” e ele se esquivava de fazer esse papel do apoio. Mesmo assim ela agia no sentido de realizar seus próprios projetos de vida, mas aprendeu a agir sem contar com a participação dele.

Com o tempo, ela deixou de compartilhar com ele o seu entusiasmo diante das possibilidades pro futuro, aprendeu que era melhor assim pra ele não contaminar os seus projetos. Aprendeu a viajar com as amigas de quando em vez para poder se inspirar e por várias vezes deixou de comemorar os seus sucessos profissionais para não ofender esse marido que estava cada vez mais desmotivado e dependente dela.

Veio a crise, entre eles havia um incômodo no fato dessa mulher ter dado um jeito de se manter produtiva e de desfrutar daquilo que a sua produtividade permitia.

Até aquele momento da vida a dois, toda a produção dessa mulher havia sido destinada às necessidades do casal, o seu tempo, seu esforço e seu dinheiro tinham como destino suprir as demandas quotidianas da casa e dos filhos ainda pequenos. Mas agora essa mulher estava diferente e sua nova atitude que, além de suprir as demandas da família também dava conta dos seus próprios desejos, era vista, pelo marido, como uma afronta ao seu delicado momento pessoal.

E então aconteceu na consulta aquele momento em que a gente percebe uma verdade que sempre esteve lá: ela já estava sozinha fazia tempo.

O quanto essa noção de “estar sozinha” para nós mulheres é definida pelo destino do nosso esforço?

Será que estamos nos sentindo acompanhadas apenas quando nos dedicamos a atender uma situação onde um homem está envolvido?

O quanto de machismo constrói esse pensamento e quem se beneficia dele?

Houve recentemente um caso de duas turistas argentinas que foram atacadas durante uma viagem ao Equador e a imprensa noticiou o fato chamando a atenção para o fato de que elas “viajavam sozinhas”, culpabilizando tacitamente as mulheres pelo ataque que sofreram. Quando duas mulheres, que estão juntas e portanto fazendo companhia uma à outra, são consideradas “sozinhas”, quem é que está faltando?

E daí fomos explorando nas sessões seguintes essas correlações entre a companhia do homem no espaço público para definir quem é uma mulher “de respeito”, até chegar nesse modelo de vida onde as mulheres mantém relacionamentos em que não são atendidas na intenção de evitarem o lugar da “mulher sozinha”, ainda que estejam de fato sozinhas na relação e se esforçando demais por conta disso.

Para essa mulher foi bem importante assumir que estava de fato sozinha, mas que não era uma pessoa necessariamente solitária, tinha amigos e família que continuavam a acompanhá-la. E essa constatação funcionou como uma autorização para agora pudesse gozar livremente do seu tempo e da sua produtividade como bem lhe conviesse. Que o medo de ser uma “mulher sozinha” a mantinha numa roda viva, destinando toda sua produtividade num estilo de vida que a consumia totalmente e que sequer supria sua demanda individual pela companhia e apoio que idealizava no casamento.

E eu estou pensando nisso até agora, o quanto queremos acreditar nessa programação cultural que afirma que nossa produtividade no mundo só tem valor quando é destinada ao projeto família onde a mulher se realizaria como esposa e mãe. Será mesmo?

2 comentários:

  1. ... essa humanidade da mulher, levada com dores e humilhações, virá à luz quando ella se tiver despida das convenções da mera feminilidade nas metamorfose da sua condição exterior, e os machos, que ainda hoje não a sentem vir, vão ficar surpreendidos e Batidos. Um dia vos será a donzela, e a mulher, cujo nome não significará mais apenas um oposto ao masculino, mas algo próprio, algo que não induza a pensar em complementos e fronteiras mas somente à existência e vida: a criatura feminina.
    Esse progresso transformará a experiência do amor, que agora está cheia de erro, a mudará da raiz, a mudar em uma relação que é entendida por ser humano a ser humano, não mais de macho e fêmea.
    E esse amor mais humano (que se fará infinitamente atento e ligeiro, e bom e claro no amarrar e derreter) será ao que nós lutando e com esforço vamos preparando, pois o amor consiste nisso: que dois solidões se protejam, se definir E se despedirem uns aos outros.

    Rainer Maria Rilke, letras a um jovem poeta

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    1. Muito bom, não conhecia esse texto e fiquei curiosa pra saber mais. Obrigada por partilhar aqui :-)

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