O ano 2019 mal começou e a aqui em terras brasileiras a gente tem visto uma grande inquietação entre as pessoas que estão entrando em contato com um novo momento do país, algumas com ânimos mais exaltados antevendo possíveis cenários negativos, outras apoiando as recentes mudanças confiando nos ajustes que vem sendo apresentados; fato é que estamos experimentando um período de muitas certezas e opiniões que acabam nos mantendo a todos muito polarizados.
Por "coincidência" (não existem coincidências!!) a Netflix lançou bem recentemente o filme BirdBox, estrelado e produzido pela atriz Sandra Bullock. E esse é um filme que dialoga muito com o nosso cenário atual, em que as pessoas vivem sempre tão certas daquilo em que acreditam que estão perdendo a habilidade de se comunicar e conviver.
O filme inicia com essa perspectiva, mostrando um quadro pintado pela Sandra Bullock com pessoas dispostas numa mesa no que seria uma "última ceia" mas cada uma entretida em seu próprio mundo, todas juntas mas na prática separadas e experimentando uma realidade própria, sem comunicação e sem interação com as demais. Aqui a personagem revela que está grávida e que este seria seu maior medo, o de não conseguir amar o próprio filho.
A partir dessa abertura, filme propõe um evento fantástico a que toda a população mundial é exposta e a partir daí temos desdobramentos muito interessantes do ponto de vista da Psicanálise, pois é aqui que o roteiro entrelaça as teorias psicanalíticas de Freud com a visão peculiar da psicologia analítica de Jung.
Apesar do purismo majoritário da psicanálise, como eu sou integrativa, particularmente adorei o enredo do filme que conseguiu unificar as duas teorias de uma forma bem convergente e interativa mesmo.
Basicamente, o filme propõe uma situação hipotética mas plenamente possível do ponto de vista da constituição psíquica do elemento humano. Toda a população mundial teria sido exposta ao inconsciente coletivo e a visão do que existe nessa camada sutil seria tão terrível que dispararia um surto psicótico geral - experimentado subjetivamente e aí cada um reagiria de acordo com a sua estrutura psíquica própria.
Freud indica 3 possíveis conformações psíquicas, estruturas, que vão se confirmar ao longo da vida do sujeito: a Neurose, a Psicose e a Perversão.
Na neurose, os indivíduos negociam a suas necessidades mais vitais e cedem aquelas partes do seu desejo que dá pra ficar sem, entregam essas certas partes de si-mesmo que ficam escondidas na área do recalque, aquela região do inconsciente onde a gente não enxerga e nem sabe bem o que tem por lá. No filme, a neurose é simbolizada pela venda constante que os sobreviventes utilizam, são eles que conseguem sobreviver à tragédia global desde que não vejam o que está "lá fora".
E mesmo entre os sobreviventes há aqueles que não dão conta da venda e olham pra fora, o que causa um efeito devastador nessas pessoas que enxergaram a realidade na sua totalidade e elas acabam agindo no sentido de dar fim à própria vida. É bem interessante como o filme propõe essa atitude mostrando os personagens que de repente revêem a própria mãe e vão na sua direção, que na verdade é a direção da extrema introversão e da vontade de dissolução que está além do princípio do prazer de Freud - a pulsão de morte.
E por fim temos aqueles que contemplaram a visão terrível e mesmo assim não foram afetados. Estes seriam então os perversos, sociopatas e psicopatas que já estavam expostos à esse aspecto terrível da realidade, da violência e da aniquilação. Claro que aqui estamos falando do grau máximo dessa estrutura psíquica, mas enquanto padrão a sugestão que o filme faz é de que esta seria a estrutura que escaparia do efeito destruidor da exposição (a um primeiro momento) porque se colocaria a serviço dessa destruição. É o que vemos no filme, o padrão em ação, os personagens que sobrevivem ilesos à exposição das visões procuram outros sobreviventes para matá-los diretamente ou provocar sua morte pelo suicídio desencadeado pelas visões.
Mas ainda com um cenário tão terrível, a protagonista é mobilizada pela recente maternidade a continuar sobrevivendo assumir a missão de cuidado do próprio filho e da outra criança. Essa cena remonta ao arquétipo da Mãe e do padrão da energia feminina, que trata da geração e do cuidado com vida que é tão frágil. O parto, como experiência máxima da energia feminina, parece disparar na protagonista essa noção da maternagem como forma de sobreviver não mais por ela mesma, mas para garantia da continuidade do humano representado pelas crianças, numa correspondência muito bonita com o Self de Jung que se apresenta como uma criança nos processos terapêuticos nos lembrando de que vale a pena deixar florescer aquilo que há de melhor e mais autêntico em nós mesmos.
Mas voltando ao enredo do filme, o desdobramento dessa exposição em massa aos conteúdos do inconsciente coletivo ao qual não damos conta de elaborar terminaria por subverter a ordem civilizatória atual, onde todos convivem negociando (sociedade predominantemente neurótica) para uma nova ordem onde não é mais possível desfrutar da existência, da natureza, não é mais possível produzir alimentos nem socializar pois o medo de ser aniquilado é preponderante a tudo.
Nem as crianças tem nome mais, são chamadas de "Garoto" e "Garota", denotando o quanto uma nova ordem baseada no medo da aniquilação impediria o desenvolvimento psíquico saudável até mesmo por conta da ausência de um nome próprio - pilar para a construção da identidade subjetiva.
O filme termina mostrando que as pessoas que sobreviveram com as vendas, supostamente os neuróticos, conseguem se refugiar numa construção antiga onde há vários pássaros que não conseguem mais sair da edificação, numa analogia com o quanto as próprias pessoas também ficaram confinadas a um espaço tão restrito (nosso território físico e psíquico) e toda a fragilidade da nossa condição humana.
Enfim, o filme nos convida à essa reflexão tão atual sobre como estamos direcionando nossos relacionamentos a nível global e para onde nos levaria a ausência de interações reais com os outros e com o nosso ambiente, na era das pós-verdades onde só é verdade "aquilo em que eu acredito" - ignorando séculos de conhecimento construído pela humanidade.
Será que perderemos nossa habilidade de convivermos pacificamente e daremos lugar ao padrão perverso de destruição e medo?
Pra onde nos levam as autoverdades?
Espero que o filme deixe boas reflexões pra todos nós, e pra quem curte o blog convido a conhecer meu novo canal no Youtube onde vamos começar a publicar vídeos falando destes e outros temas que fazem a gente repensar o nosso mundo.
Me siga por lá pra ficar por dentro de todas as novidades e trocarmos mais ideias :-)
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