terça-feira, 5 de novembro de 2019

Filme Coringa - análise psicanalítica

verbenna yin

Hoje quero falar um pouco sobre o filme Coringa (2019) nessa versão estrelada por Joaquim Phoenix que encarna o vilão das histórias em quadrinhos de uma foram surpreendentemente humana.

Já nas primeiras cenas do filme o personagem principal, ainda Arthur Fleck, é mostrado como um palhaço profissional que está fazendo sua maquiagem, um rosto com um grande sorriso vermelho estampado. Porém sua atitude não é de alegria, ele está com o olhar mais distante e em certo momento uma lágrima escorre. O palhaço está triste. E já nesta primeira cena entramos em contato com essa dimensão dicotômica na qual todos nós nos identificamos com o personagem, com as ambivalências dos sentimentos. Todos somos capazes de reconhecer essa polaridade que existe dentro da gente, amor e ódio, alegria e tristeza, inveja e gratidão e por isso nos reconhecemos de imediato com o personagem logo no início do filme.

Afinal, quem nunca teve que forçar um sorriso e fingir que estava tudo bem?

Além disso, o personagem está em conflito pois depende de medicamentos psiquiátricos para manter a saúde estável e conta com a ajuda do serviço social para isso, porém é informado que essa ajuda será interrompida e não terá mais acesso aos remédios, antevendo assim os desdobramentos da sua doença mental.

Também no início do filme Arthur Fleck é agredido por um grupo de garotos sem conseguir se defender, mesmo caído no chão os garotos continuam chutando e batendo nele. Isso nos mostra o quanto Arthur é de fato impotente diante da vida que se impõe, ele não consegue se posicionar nem realizar o que de fato deseja fazer.

Em casa, Arthur cuida da mãe idosa e doente mentalmente. A mãe o chama de "Feliz" e ele conta pra ela que está se preparando para fazer um Stand-up Comedy, uma apresentação de humorismo. Tem um sonho de um dia participar de um programa de TV como convidado, onde contaria piadas engraçadas fazendo todos rirem e receberia de volta o abraço com elogios do apresentador.

Com tudo isso a gente percebe o quanto Arthur internalizou o discurso da mãe, que o vê como alguém que precisa levar alegria adiante. Ele incorporou esse desejo dela não só atuando como palhaço profissionalmente mas também desenvolvendo uma risada bem sonora, descontrolada, a qual ele não consegue parar e acaba incomodando os outros com isso. Essa risada é um grande sintoma que metaforiza todo o processo de alheamento de si-mesmo, pois ele não consegue ser outra coisa senão o desejo da mãe. Outro sintoma é sua aparência física, ele é extremamente magro e pálido, sem energia, e passa uma imagem de quem está faminto, desnutrido e não encontra saciedade.

Arthur não teve pai, não se sabe quem seria esse pai e ele viveu uma completa ausência da figura paterna responsável pelo processo de inclusão do indivíduo no mundo simbólico. Percebemos que Arthur tem dificuldades com limites, haja vista sua risada descontrolada, bem como já desenvolveu alucinações sobre um relacionamento afetivo com a sua vizinha. Neste ponto, a foraclusão lacaniana explicaria um tanto a estrutura psíquica desse sujeito no ambiente da psicose, pois a ausência da castração paterna (nome do pai) impede o processo regular de simbolização e o reconhecimento dos desejos internos.

A mãe por sua vez é narcisista e vive com o filho numa dinâmica também narcísica onde o faz acreditar que ele seja aquilo que ela vê e deseja, mas ao mesmo tempo não o confirma. O filho se esforça para agradá-la mas ela não corresponde, inclusive rejeita o esforço que ele faz. Quando ele conta que irá se apresentar no Stand Up ela responde ironicamente que "ele não tem graça", desqualificando seu esforço em agradá-la e gerando nele sofrimento pela falta de acolhimento.

Por outro lado, Arthur realmente não tem muito talento para fazer rir e inclusive precisa pensar e escrever as piadas que pretende contar, demonstrando que existe um conflito entre o que ele é de fato e o que ele acredita ser.

Então esse personagem que vive suas ambivalências, está numa condição vulnerável socialmente, dependente de uma medicação que não será mais fornecida, está também diante de um conflito importante que é o reconhecimento de que seus desejos próprios não tem lugar no mundo onde vive e ele não conseguirá realizá-los.

Quem realiza no mundo é o Ego, é essa a instância que consegue se relacionar com as pessoas e que concentra aquilo que conhecemos sobre nós. Mas para que o ego se estruture adequadamente e possa cumprir suas funções são necessárias algumas condições basilares de desenvolvimento:
- RECONHECIMENTO
- VALORIZAÇÃO
- PERTENCIMENTO.

O reconhecimento vem da figura materna, que ao atender os desejos primitivos do bebê confirma sua existência e valida suas necessidades, fazendo surgir um canal de circulação positiva da libido. Em seguida, a valorização do indivíduo vem da figura paterna, que no processo de castração e imposição de limites faz com que o sujeito perceba suas próprias capacidades e consiga se sustentar sozinho, levando-o a um passo adiante na circulação libidinal que é o querer-realizar. Já o pertencimento é o ambiente de acolhimento e segurança onde nos sentimos parte de algo maior, aprendemos a fazer ajustamentos nos nossos impulsos para seguirmos conectados ao grupo ao qual nos identificamos e  isso reforça as características próprias que reconhecemos em nós.

Para Arthur faltaram esse 3 aspectos, a mãe não o reconhecia como indivíduo desejante, ele não desenvolveu um senso de valorização pois a figura paterna foi ausente e ainda não possuía núcleos afetivos que conferissem a sensação de pertencimento. O Ego dele não deu conta.

E com todo esse contexto, Arthur recebe "de presente" uma arma, esse objeto fálico que irá transformar sua vida para sempre. Ele de alguma forma reconhece o poder contido nesse objeto, de uma forma totalmente inadequada o leva para uma apresentação cômica num hospital infantil, demonstrando que se vinculou ao objeto e construiu um certo significante a partir dele.

A partir daí, Arthur passa a ter reações mais agressivas. Mata com a arma os rapazes do trem que o estavam assediando e em seguida performa uma dança solitária e muito envolvente consigo mesmo no espelho de um banheiro público, num retorno talvez ao estádio do espelho onde possa reaprender a se ver e a se reconhecer e assim, finalmente, conseguir lidar com sua própria esfera desejante.

Em seguida Arthur mata sua mãe por sufocamento e nesse ato confessa que sua vida "era uma grande comédia". O sufocamento da mãe aparece como contraponto à sua necessidade de afirmação, pela palavra, daquilo que é o seu real e aqui o indivíduo passa para um autorreconhecimento muito importante que irá conduzir a narrativa daí pra frente já de uma maneira muito mais apropriada de si mesmo - ainda que as escolhas do personagem recaiam na agressividade e violência.

As mortes também evidenciam como Arthur Fleck não consegue simbolizar, as vozes que o incomodam agora precisam ser caladas literalmente e ele age no mundo real matando de verdade e assim confirmando sua existência.

Ele diz: "Durante toda a minha vida eu nem sabia se eu realmente existia. Mas eu existo, sim."

Por último Arthur se transforma em Coringa, se apoderando de uma imagem visual própria e que evoca a figura do Joker do carteado. Ele surge numa escadaria e dança novamente, uma dança mais segura e firma, uma performance. O Coringa está diante da oportunidade que tanto queria sendo convidado a participar do programa de televisão. Porém, ao ser entrevistado, o Coringa percebe que a intenção do apresentador não é exatamente mostrá-lo como um comediante mas sim como a própria piada, numa exploração do seu sofrimento pessoal. Ele fica bastante afetado emocionalmente e reage matando o apresentador em rede nacional, usando a arma (objeto fálico) para fazer cessar aquela situação de incompreensão e exploração da sua dor.

Dali em diante o Coringa passa a ser um símbolo social e a cidade vive um momento de revolta coletiva, com pessoas fantasiadas também de Coringa e desafiando a ordem e a autoridade, numa correspondência entre o individual e o coletivo e sugerindo, tal qual Jung, que o processo de um único indivíduo tem o condão de afetar também a sua coletividade. O tempo todo o filme mostra analogias entre o que se passa individualmente com Arthur Fleck e a cidade, o ambiente tóxico, a fumaça constante de cigarro, o lixo acumulado pelas ruas, a poluição e as cores cinzas da cidade. Da mesma forma, quando Arthur se transforma em Coringa e retoma pela arma sua narrativa própria, estoura uma revolta social na cidade que agride as figuras de autoridade (policiais e prefeito). Símbolos que vão registrando a chegada de uma nova ordem, uma reorganização do sujeito e, por consequência, o caos efervescente do seu meio.

E neste turning point da trajetória de Arthur em Coringa me parece muito oportuna a frase de Nietzche, quando propõe a ideia do Übermensch, o Super-Homem ou o Além-do-Homem como criatura capaz de fazer a organização estabelecida voltar a um ponto zero para ser reiniciada.

Ele me parece esse além-do-homem justamente porque ao reclamar sua existência e retomar o seu poder, o Coringa não se fixa a nenhuma das estruturas psíquicas freudianas: ele poderia ser perverso mas deseja e demonstra afeto, até poupou o anão e o deixou sair; ele poderia ser psicótico e realmente alucina um relacionamento com a vizinha, mas ele retorna dessa fantasia e faz isso sem uso de medicação; ele tem no corpo uma conversão histérica da risada como manifestação do desejo da mãe mas já não tem mais o desejo de se ajustar neuroticamente.

O que é o Coringa, afinal?

"É preciso ter o caos dentro de si para fazer surgir uma estrela dançante." O Coringa dançou ao se reconhecer no espelho, num gesto de espontaneidade de quem finalmente abriu caminho para a própria libido se expressar com liberdade de movimentos. Ele voltou ao ponto de partida e vai reescrever a estória.

O Coringa encarna em sua trajetória individual os requisitos que o tornam esse Além-do-homem, à sua maneira mais agressiva e violenta, mas que num universo dual, de polaridades e ambivalências, o torna o precursor do real Super-Herói (Batman) que irá surgir num segundo momento como resultado de sua ação numa tentativa de restabelecimento do equilíbrio da ordem em novas bases.

E pra finalizar, deixo aqui o vídeo do Youtube onde falei sobre o filme numa analogia bem interessante com o TAROT, onde a gente encontra esses conceitos já formulados e simbolizados graficamente. Ative as legendas :-)









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